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Aprendendo a LIBRAS e Reconhecendo as Diferenças: Uma Proposta de Intervenção Junto a Ouvintes
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Publicado em 2007
Gestus - Revista Científica da Faculdade Osman Lins
Luiz Albérico Barbosa Falcão
Resumo

Superada a discussão inicial sobre a necessidade de inclusão da Língua Brasileira de Sinais na formação universitária e em especial aos profissionais da educação, uma série de questões didático-político-pedagógicas se apresentam. Algumas destas questões referem-se aos fundamentos e aos papéis da língua de sinais LIBRAS, como primeira língua, e Língua Portuguesa, como segunda língua, na educação das pessoas surdas. Na perspectiva de universalizarmos o acesso aos conhecimentos da LIBRAS e da cultura surda, como proposta de formação profissional em Instituições do Ensino Superior do estado de Pernambuco e respeitando o Decreto 5626/2005, equacionando as questões políticas de acessibilidade e permanência com qualidade no ambiente escolar e acadêmico. Nesta proposta apresentamos uma análise e apresentação de intervenções já efetivadas que apresentam o processo de construção político-pedagógica do conhecimento no ensino da LIBRAS para ouvintes nos diversos cursos de graduação, visando um novo dimensionamento curricular dessa Língua e das práticas pedagógicas em sala de aula. Esta intervenção encontra-se no segundo ano de implantação com a formação de mais de 1500 acadêmicos já tiveram alguma experiência Bilíngüe e muitos se encontram como agentes multiplicadores da proposta. Então podemos afirmar que mudanças significativas, principalmente atitudinais, conceituais e filosóficas em relação à surdez, à pessoa surda e ao ensino de surdos vêm ocorrendo por parte dos ouvintes acadêmicos e a comunidade participante como reestruturação de uma proposta metodológica para o ensino da LIBRAS para ouvintes.

Introdução

Toda busca de conhecimento é renovadora e inovadora. A curiosidade é um atributo pessoal que estimula a aquisição de novos valores. Conhecer uma nova língua nos torna mais versáteis, ecléticos e renovados de oportunidades, pois desperta-se um potencial antes desconhecido. E se a nova forma de comunicação tem finalidades de progresso profissional e de comunicação com o nosso próprio povo, ela chega a bom tempo como requisito de crescimento pessoal, profissional e de cidadania.

Aprender a língua que as pessoas surdas falam é um desafio e ao mesmo tempo uma terapia onde se dialoga com gestos e faces, onde se ama com o toque e com o olhar.

A LIBRAS chega neste momento para situar os hemisférios da sociedade em construção, integrando a vida do ouvinte e do surdo, numa perspectiva em que não se deve enaltecer o desastre nem o desespero por ser ouvinte dos gritos, das guerras, das multidões, de verbos que torcem nossos sentimentos calejados de abandono e miséria humana mundial.

É no silêncio dos gestos que nos encontramos para aprender o essencial da comunicação, a expressão sincera do olhar, a leveza das formas que classifica cada ato como verdade absoluta e que se não percebida, apreendida e reconstruída de significados sociais e sentidos pessoais, se esquece.

A Língua Brasileira de Sinais está oficializada no Brasil desde o início do século e regulamentada pelo Decreto 5626 em 2005. Deve ser falada em todos os ambientes escolares, empresariais, universidades e espaços públicos e oferecida à toda a população como modalidade bilíngüe: LIBRAS e Língua Portuguesa (LP), pois assim marcaríamos nosso século com significado de multiculturalidade, respeito e dignidade humana.

Mas por onde está o movimento de universalização e reconhecimento da LIBRAS como língua nacional?

Muito mais ainda do que uma formação profissional que agrega valores quantitativos, a qualidade de vida e a humanização da relação interpessoal se solidificam ainda mais na formação humana e consciente de que à sociedade multicultural, é imprescindível a presença da diversidade em convivência e que se situe na inter-relação, harmônica e ética, entre surdos e ouvintes.

Este estudo tem como objetivo apresentar a LIBRAS como modalidade lingüística conceitual e pedagógica visando a interação intercultural, entre surdos e ouvintes, potencializando a comunicação bilíngüe na graduação e formação profissional.

Contexto Inclusivo em Pernambucano

Em Pernambuco , dos 948 mil alunos matriculados na Rede Pública, 8.845 pessoas apresentam alguma deficiência, o que não representa 1% do total das pessoas com deficiência. Deste montante, 1.560 apresentam deficiência auditiva. Mas os surdos não gostam de serem chamados assim. São pessoas que possuem a percepção de mundo diferente da dos ouvintes. São surdos, falam com as mãos e escutam com os olhos.

A educação de surdos em Pernambuco passa por significativas transformações no que se refere ao uso da LIBRAS em ambientes escolares desde a educação básica, ensino fundamental e médio, em atenção ao Decreto 5626/2005, respeitando a necessidade de disponibilizar o profissional Intérprete da Língua de Sinais – ILS em ambiente inclusivo, criação do curso técnico Tradutor Intérprete da Libras, ampliação da oferta de cursos de LIBRAS para a comunidade, entre outras ações que ainda se encontram em planejamento.

Atrelado as diversas ações inclusivas, percebemos a necessidade do ensino da LIBRAS para ouvintes como proposta universal do conhecimento dentro das próprias instituições, responsável pela formação destes educadores. No ano de 2004 estruturamos uma turma para 25 acadêmicos oriundos da escola pública, vinculados ao Programa Conexões de Saberes, MEC/SECAD/UFPE. Em virtude da repercussão da proposta, obtivemos em 10 dias, a inscrição de 900 pessoas, necessitando trocar de sala de aula comum, para 4 auditórios com capacidade de 200 pessoas cada. Este fato confirmou a necessidade e interesse, por parte da população acadêmica de diversas instituições de Ensino Superior de Pernambuco, em adquirir os conhecimentos básicos da LIBRAS. Neste segundo ano de intervenção, ultrapassamos 1500 pessoas bilíngües, para tanto, percebemos a necessidade de formalizar esta metodologia através de um Manual de Ensino da LIBRAS para que outras pessoas também possam se valer desta metodologia para apresentar a LIBRAS em outros espaços.

Contexto Histórico e Reflexivo da Pessoa Surda

No período anterior a 1750, os surdos viviam na marginalidade. A incapacidade para o desenvolvimento da fala e conseqüente impossibilidade de comunicação oral e por não manterem contato com outros surdos, eles eram tidos como loucos, môcos, agressivos, enfim, incapazes de se comunicarem, de terem seus direitos civis e sociais respeitados.

Quando chegavam à idade adulta, eram forçadas a fazer trabalhos desprezíveis, vivendo isolados, geralmente à beira da miséria e considerados, muitas vezes, ineducáveis, devido à relevância dada à palavra e à audição.

A falta de esperança de alfabetização, educação ou comunicação com os surdos era a realidade da época. Alguns surdos de famílias nobres, no século XVI, para receber reconhecimento como pessoas da lei e conseguir títulos e herança da família, eram forçados a aprender a falar e a ler.

Os estudos sobre a aquisição do conhecimento pelas pessoas surdas, de um modo geral, ainda são insignificantes. Trata-se de uma área que, ao longo da história, sofreu diversos processos de intervenção e retrocesso, a citar o congresso de Milão em 1880, quando os surdos foram obrigados a falar, proibidos de utilizar as mãos para se comunicar.

Naquela época, o Oralismo passa a ser a ordem mundial que perdurou até o final do século passado. Em seguida surge a filosofia da Comunicação Total em que atenta para qualquer procedimento que contribua na comunicação dos surdos. No início deste século o Bilingüismo LIBRAS/LP passa a ser o modelo preferencial de filosofia educacional apontado como solução para o atraso da aprendizagem e inclusão do surdo nos diversos espaços sociais.

Linha do Tempo na História da Educação de Surdos no Brasil

1857

O início da história dos surdos no Brasil deu-se em 1857, durante o império de D. Pedro II, quando o professor francês Hernest Huet fundou o Instituto Nacional dos Surdos-Mudos no Rio de Janeiro. Após formar a primeira turma de professores, em 1954, o Instituto Nacional dos Surdos-Mudos, em 1957, passou a se chamar Instituto Nacional dos Surdos.

1951

Os anos 50 foram marcados por uma série de ações importantes, como a criação do primeiro curso normal para professores na área da surdez (1951). Neste ano, o INES recebeu a visita de Helen Keller, cidadã americana, surdacega, cuja trajetória de vida é um exemplo até os dias de hoje. Em 1952 foi fundado o Jardim de Infância do Instituto e no anos seguinte criou-se o curso de Artes Plásticas, com o acompanhamento da Escola Nacional de Belas Artes. Em 06 de junho de 1957, o Instituto passou a denominar-se Instituto Nacional de Educação de Surdos.

1970 a 1980

Na década de 70 foi criado o Serviço de Estimulação Precoce para atendimento de bebês de zero a três anos de idade. No início dos anos 80, com a criação do Curso de Especialização para professores na área da surdez, o INES investe na capacitação de recursos humanos.

1977

Fundada a FENEIDA (Federação Nacional de Educação e Integração dos Deficientes Auditivos), cujos participantes na direção da instituição na época, eram apenas pessoas ouvintes. Os surdos eram tratados e reabilitados, assim devolvidos para o convivio com a sociedade.

1987

Criada a Associação Brasileira dos Surdos, cuja finalidade é lutar pelos direitos dos surdos, a FENEIDA passa a se chamar FENEIS (Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos). O ensino de LIBRAS (Língua Brasileira de Sinais) passa a ser exigido pelos surdos que passam a ser responsáveis pela sua Instituição e por suas decisões.

1990

É criado o informativo técnico-científico Espaço, cujos artigos são voltados para a educação do aluno surdo. A partir de 1993, o INES adquiriu nova personalidade com a mudança de seu Regimento Interno, através de ato ministerial. O Instituto passa a ser um centro nacional de referência na área da surdez.

2002

Reconhecimento oficial da LIBRAS pelo Governo Federal(Lei no 10.436, mais conhecida como a Lei da LIBRAS.

2005

Regulamentação da Lei 10436/02, pelo Decreto 5626 que determina entre outras obrigações, um prazo máximo de 10 anos estar inserida a LIBRAS nos currículos dos cursos de licenciaturas, Pedagogia, Letras e Fonoaudiologia, além de professores bilíngües em todas as escolas com classes regulares. É regulamentada a profissão de intérprete e através de concurso público o Governo de Pernambuco torna-se pioneiro.

2006 a 2007

Implantação em Pernambuco do primeiro Curso Técnico nível nacional de Tradutor/Intérprete da Língua de Sinais oferecido na Escola Estadual Almirante Soares Dutra. É realizado o 1º exame de proficiência da LIBRAS – Prolibras. Surgindo mercado de trabalho para profissionais surdos e ouvintes nas categorias de instrutor, intérpretes e professores, em cumprimento ao Decreto 5626/05.

O Sujeito Surdo numa Abordagem Dialética

Os surdos apresentam a língua visuo-espacial e não oral-auditiva. Reconhecidamente carregam o estigma de « portadores de deficiência » mas que, na realidade, se aceitos, iniciados, inseridos e apresentados, com habilidade e competência familiar e profissional, desde os primeiros anos de vida, à sua língua natural, língua de sinais, no Brasil, a LIBRAS, seguem o seu ritmo de vida, de comunicação, compreensão lingüística e aprendizagem semelhante aos ouvintes.

Necessário se faz, portanto, a construção de saberes fundamentados na atenção desta minoria lingüística, contribuindo para a saída do estado de isolamento social e desconhecimento conceitual, fortalecendo a educação e a intelectualização através da inclusão no ensino regular em convívio com a diversidade, em busca da qualidade, acessibilidade e permanência e que garantam a interação sócio-cultural, desestruturando o paradigma da deficiência sob um olhar evidente das diferenças e da necessidade da oferta de uma pedagogia diferenciada, diferente do preconceituoso estigma terapêutico da surdez.

Nesta perspectiva pretende-se favorecer a criação de suporte pedagógico universal e bilíngüe (Língua Brasileira de Sinais e Língua Portuguesa) respeitando um abordagem acessível nas diversas áreas do conhecimento e das ciências, cujo modelo de informação e comunicação favorece o desenvolvimento intelectual do aluno surdo, inserindo-o num novo paradigma educacional da Educação Especial com uma Pedagogia Diferenciada.

Na percepção histórico-cultural e sócio-antropológica a surdez está baseada num modelo lingüístico, psicolingüístico e sociolingüístico oposto ao modelo terapêutico que entende a comunidade surda originária de uma atitude diferente ao déficit que lhe é atribuído, em que o sentimento de identidade grupal, o auto-reconhecimento e a representação Surda, politicamente, promovem a redefinição da surdez como diferença e não deficiência.

A redundância desta abordagem se justifica nas questões pedagógicas. Por falta de preparo e de experiências educacionais durante a formação, muitos professores, graduados na atualidade, tornam-se reprodutores de uma prática pedagógica homogeneizante.

Recebi um aluno surdo em sala de aula. O que fazer para me comunicar com ele e educá-lo? »

Questões como esta são comuns em roda de professores.

Temos visto que os conteúdos curriculares dos cursos de formação de professores deixam de valorar metodologias alternativas para o ensino dos surdos, evidenciando questões terapêuticas de como e porque surge a surdez, em detrimento de ações voltadas ao contexto educacional diferenciado em que a LIBRAS seria um elemento fundamental para a estruturação da aprendizagem e aquisição dos conhecimentos.

A Escolaridade dos Surdos diante da formação de professores

O contexto educacional de inclusão das pessoas surdas em sala regular no Brasil se confronta com lacunas na formação profissional onde os conteúdos e as vivências curriculares não correspondem às diferenças educacionais requeridas na educação de surdos.

A questão sobre a educação dos surdos é um assunto que requer cada vez mais a atenção de educadores e pesquisadores, não só na aquisição da LP como segunda língua, mas em todas as áreas do conhecimento, desde a aquisição da apropriação da linguagem matemática, aos princípios fisiológicos e anatômicos para a preservação manutenção da vida humana com saúde e dignidade.

Afora a imensa variação de faixa etária: de 14 a 30 anos na 3ª série do ensino fundamental, observamos surdos em séries adiantadas, no ensino médio, por exemplo, apresentarem várias lacunas. Operações simples de adição e subtração, ainda são trabalhadas com a conta na ponta dos dedos, não que este procedimento esteja incorreto, mas eles já deveriam ter desenvolvido habilidades do cálculo mental, o que normalmente acontece logo nos primeiros anos de alfabetização.

Por que seus professores, na época, não estimularam os alunos surdos a desenvolverem estas habilidades, tão simples e triviais, quanto importantes e necessárias? A aquisição de estratégias simples como estas refletem diretamente na estruturação e resolução de atividades mais elaborados, seqüência trivial do decorrer da escolaridade. Além de perder tempo na contagem dos dedos, são motivo de chacota e discriminação dentro e fora de seus pares.

Uma outra área das ciências que também apresenta dificuldades é a Biologia. O corpo humano se resume a pouco mais de 40 sinais, comumente com a sobreposição de funções fisiológicas, não permitindo interpretações e compreensões específicas.

O Ensino da LIBRAS para e por Ouvintes

Durante décadas, a LIBRAS permaneceu reduzida ao grupo de surdos e de alguns ouvintes que se infiltravam em ambientes escolares, igrejas e associações. Pouco se ensinava, também pouco se sabia e se mantinha hegemônicamente sob o controle de alguns dirigentes que promoviam o controle do que e a quem ensinar, além da reserva de mercado.

Desde 2004 iniciamos o desafio de romper com este paradigma nocivo e inconstitucional através da oferta gratuita de cursos de LIBRAS nas Instituições de Ensino Superior de Pernambuco, visando um novo dimensionamento curricular dessa Língua e das práticas pedagógicas em sala de aula. Essa intervenção encontra-se no segundo ano de implantação com a formação de mais de 1500 acadêmicos que já tiveram alguma experiência bilíngüe e muitos, atualmente, se encontram como agentes multiplicadores da proposta. Então podemos afirmar que mudanças significativas, principalmente atitudinais, conceituais e filosóficas em relação à surdez, à pessoa surda e ao ensino de surdos vêm ocorrendo por parte dos ouvintes acadêmicos e a comunidade participante como reestruturação de uma proposta metodológica para o ensino da LIBRAS para ouvintes.

A metodologia aplicada consiste na apresentação do ensino da LIBRAS, utilizando diversos contextos da vida diária, relacionando os sinais na construção de diálogos e temáticas, expondo-se um modelo cultural bilíngüe. Esta proposta metodológica é sistematizada através da Tabela de Configurações da LIBRAS baseada no Alfabeto da Língua Portuguesa, composta por sete colunas com a disposição do alfabeto e numerais, avaliada pelos alunos como facilitadora da aprendizagem das configurações e dos sinais.

Existem alternativas de socialização e universalização dos conhecimentos da língua de sinais e da cultura das pessoas surdas junto a diversos espaços sociais. As IES em Pernambuco vêm contribuindo para o conhecimento e reconhecimento da Língua Brasileira de Sinais como caminho de convivência e relacionamento com os surdos.

A variante entre ouvintes e surdos é o canal de comunicação, assim sendo, aprendamos a nos comunicar com a língua de sinais e a pensar, falar, compreender, conhecer, apreender, trocar, construir, reconstruir, sonhar, sofrer, sentir, significar a vida em LIBRAS, com propriedade, para estarmos prontos ao debate sobre educação de surdos.

Bibliografia

Falcão, L.A.B. I Fórum Social de Educação e Saúde na Diversidade Cultural:O Surdo na Universidade Pública.Relatório Final. 2005p.6

BRASIL. Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005. Regulamenta a lei no 10.436, de 24 de abril – Brasília. MEC/SESSP 2005.

IBGE. Censo demográ fico. Brasil. 2000. Disponível em:<http://www.ibge.gov.br /home/estatistica/populacao/censo2000/tabulacao_avancada/tabelabrasil_1.1.3.shtm>. Acesso em: 3 junho 2002

INES-Instituto Nacional de Educação de Surdos (www.ines.gov.br). , http://www.ines.org.br/Paginas/historico.asp, acesso em 20.02.2007

Folha de São Paulo. Aluno com Deficiência ganha espaço. Segunda, 17.04.2006. Grande Recife, p.5

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