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Análise da conversação de dois alunos surdos aprendendo inglês: a organização do reparo
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Publicado em 2010
Entretextos, Londrina, v.10, n.1, p.34-54
Tânitha Gléria de Medeiros
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Resumo

Análise da Conversação (AC) com alunos surdos? Sim, uma vez que a língua utilizada pela comunidade surda, Libras, é uma língua natural realizada por meio de um canal gesto-visual. AC é o estudo da fala em situações cotidianas em que há uma interação natural, denominada de fala-em-interação. Seu objetivo maior é compreender como a sequência de fala é gerada e negociada. Esse artigo se enquadra na AC aplicada por se basear numa interação institucional: a sala de aula de inglês. O intuito é verificar o que acontece quando três participantes estão engajados no entendimento não só da Língua Inglesa, como também da Língua Portuguesa e Libras. Isso é feito levando-se em conta um subsistema da AC, o fenômeno “reparo” (HUTCHBY e WOOFFITT, 2004; SCHEGLOFF, 2007; HAVE, 2007). O reparo é necessário para sustentar a intersubjetividade de uma interação e garantir a mútua compreensão entre os participantes. Esse estudo mostra que os alunos surdos buscam compreender a língua inglesa e, por meio do reparo, eles questionam, solicitam repetições, confirmações, são corrigidos quando produzem um sinal equivocado. O reparo em sala de aula serve para corrigir, orientar, reformular e organizar o processo comunicativo.

Introdução

Análise da Conversação com alunos surdos? Isso é possível? Entendemos que a princípio essa pergunta seja muito pertinente, uma vez que nos remete à fala, e mais precisamente, à fala em interação, ou seja, à língua oral. E que, portanto, o é cabível fazer essa análise com alunos surdos já que não há fala. Porém, ressaltamos que a língua utilizada pela comunidade surda, Libras, é uma língua natural realizada por meio de um canal gestual-visual. É fato que essa análise é complexa, já que, nas palavras de Marcuschi (2001, p.1) “não dedicarei atenção detalhada a questões mais complexas, como a aquisição da conversação, a conversação entre crianças, a interação entre surdos [...]”.

É neste momento que convidamos o leitor a abrir o seu olhar para uma nova perspectiva: analisar dados da fala em interação na sala de aula de língua estrangeira (LE), no momento em que uma intérprete e dois alunos surdos discutem o texto “Have you been taking care of your planet?” (Você tem cuidado do seu planeta?). Antes, porém, convém tecer alguns esclarecimentos sobre qual o papel de cada uma das línguas envolvidas.

Segundo Figueiredo (2006, p.30), “nos estudos sobre os processos de ensino e aprendizagem de línguas, escritos em português, L1 ou LM referem-se à língua materna; L2, à segunda língua; e LE, à língua estrangeira”. Com base nesse autor, ao levarmos em consideração a fala-em-interação de dois alunos surdos aprendendo inglês, entendemos que a LM é a Libras, uma vez que a língua de sinais representa a primeira língua da comunidade surda. Já o português representa a L2, pois é usado para se referir a segunda língua, à língua que não é a língua materna dessa comunidade, mas que é usada como meio de comunicação, uma vez que o português escrito é a modalidade de comunicação mais facilmente partilhável por surdos e ouvintes. Por fim, entendemos o inglês como LE por ser a língua ensinada nas escolas, mas que não é o meio de comunicação no país em questão (Brasil).

As Línguas de Sinais (LS) são as línguas naturais das comunidades surdas. Ao contrário do que muitos imaginam, as LS não são simplesmente mímicas e gestos soltos, utilizados pelos surdos para facilitar a comunicação. São línguas com estruturas gramaticais próprias. O que diferencia as LS das demais línguas é a sua modalidade visual-espacial. Libras, ou Língua Brasileira de Sinais, é a língua materna dos surdos brasileiros e, como tal, poderá ser aprendida por qualquer pessoa interessada pela comunicação com essa comunidade. Pela lei n.º 10.436, de 24 de abril de 2002, é nomeada como a primeira língua da comunidade surda (ou língua materna) e que a mesma deve ser adquirida o mais cedo possível. De forma semelhante, a língua majoritária, o português, considerada como segunda língua, também deve ser aprendida pelo surdo.

Goldfeld (2002) menciona que a língua de sinais (LS) não pode ser considerada a língua materna dos surdos, pois LM é aquela que a criança aprende em ambiente familiar, em contato principalmente com a mãe. Cerca de 95% de surdos são filhos de pais ouvintes. Isso quer dizer que a primeira língua em contato será a oral. Dessa forma, em decorrência das discriminações enfrentadas pelos surdos, a aquisição da língua portuguesa é dificuldade em virtude da falta de domínio da Libras. A língua de sinais é a língua materna daqueles surdos, filhos de pais surdos ou ouvintes filhos de pais surdos. Mesmo diante desse impasse, o mais indicado é que a criança adquira a língua de sinais na mais tenra idade, e, consequentemente, aprenda a língua portuguesa na escola. O importante, segundo Lacerda (2002), é apontar para a situação ideal que é a necessidade de se expor a criança surda, o mais cedo possível, à língua de sinais. Conforme a Lei n.º 10.436, de 24 de abril de 2002,

Entende-se como Língua Brasileira de Sinais – Libras, a forma de comunicação e expressão, em que o sistema lingüístico de natureza visual-motora, com estrutura gramatical própria, constitui um sistema lingüístico de transmissão de ideias e fatos, oriundos de comunidades de pessoas surdas no Brasil.

A Libras passa a ser reconhecida como a língua oficial da pessoa surda. Esse reconhecimento vem ampliando a demanda por profissionais intérpretes de Libras. Esse profissional é aquele que, tomando a posição do sinalizador ou do falante, transmite os pensamentos, palavras, emoções do sinalizador/comunicador/falante servindo de elo entre duas modalidades de comunicação (DECRETO n.º 5626/2005).

Aqui, no Brasil, na sala de aula de inglês, a língua de sinais usada é a Libras (Língua Brasileira de Sinais). E, para se referirem às palavras em inglês durante a discussão do texto, fez-se o apontamento e sua respectiva tradução em Libras ou datilologia 1. Conforme esclarecido pela Lei n.º 10.436 a Libras é uma língua de “natureza visual-motora” e que é uma língua com “estrutura gramatical própria” de forma sinalizada e não oralizada. Daí o interesse em fazer uma análise no viés da Análise da Conversação (AC) com alunos surdos.

Uma vez definido esse impasse, sobre as línguas envolvidas no processo de ensino e aprendizagem de inglês com alunos surdos, o nosso intuito nesse artigo é verificar o que acontece quando três participantes estão engajados no entendimento não só da língua inglesa, como também da língua portuguesa e Libras durante uma aula de inglês de uma escola municipal (Goiânia). Isso será feito levando-se em conta um subsistema da AC, o fenômeno reparo (HUTCHBY e WOOFFITT, 2004; SCHEGLOFF, 2007; HAVE, 2007).

Essa pesquisa justifica-se por dois motivos. Primeiro pela escassez de trabalhos nesse âmbito (Leite, 2008). Segundo, porque, ao entendermos como ocorre o reparo na fala da intérprete e dos alunos surdos aprendendo inglês, poderemos compreender e desvelar os processos de busca de compreensão e de construção da intersubjetividade.

Com a finalidade de entender e discutir o fenômeno reparo na fala-em-interação dos três participantes, faremos uma breve exposição da AC para então expormos os conceitos e as diferentes manifestações do fenômeno reparo. Adiante, expomos alguns exemplos de fala para demonstrar esse mecanismo e, por fim, tecemos as implicações e considerações acerca dessa pesquisa.

Análise da conversação (AC)

Have (2007, p. 4) afirma que, “conversação significa que pessoas estão conversando umas com as outras”. Ou seja, “a análise da conversação está envolvida nos estudos da ordem da fala-em-interação independente dos participantes e do contexto” (HAVE, 2007, p.4). Portanto, fazer uma análise da conversa entre dois alunos surdos e um intérprete, discutindo um texto em inglês, é viável e, da mesma forma que a conversa oral, é organizada e sequencial. Isso quer dizer que a conversação “não é um fenômeno anárquico e aleatório, mas altamente organizado” (MARCUSCHI, 2001, p. 2).

O que é Análise da Conversação? Segundo os autores Hutchby e Wooffitt (2004, p. 13), Have (2007, p. 3), Coulthard (1990, p.59) é o estudo da fala em situações cotidianas em que há uma interação natural, denominada de fala-em-interação. Esse estudo é feito por meio de transcrições as mais fidedignas possíveis à maneira como a fala é produzida. O objetivo maior da AC é compreender como os participantes se entendem e respondem um ao outro nos turnos da fala, isto é, como a sequência de fala é gerada e negociada.

Há dois tipos de AC: pura e aplicada (HAVE, 2007, p.174); e que se baseiam no estudo de conversas cotidianas e interação institucional, respectivamente. Have (2007) afirma que, a fala-em-interação institucional se difere da fala cotidiana pela maneira como as ações são estruturadas, tais como as restrições específicas do contexto (sala de aula – professor e aluno, consultório – médico e paciente) e que apresenta práticas discursivas diversas daquelas observáveis em conversa cotidiana. O primeiro objeto de estudo da AC foi justamente a conversa cotidiana que, posteriormente, também cedeu lugar a cenários institucionais. Segundo Hutchby e Wooffitt (2004, p. 147), os participantes da fala-em-interação são considerados agentes sociais e atuam ativamente a partir de um conjunto de conhecimentos, os quais são exibidos a todo o momento na interação.

Este artigo, portanto, se enquadra na AC aplicada por se basear numa interação institucional, uma vez que foi analisado a interação em ambiente escolar, ou seja, uma sala de aula de inglês. Sendo assim, as identidades institucionais se configuram entre a intérprete (professora) e os dois alunos surdos.

Uma das características principais da AC é a transcrição. Fato que nos remete ao nome de Gail Jefferson; fez uma das mais notáveis contribuições à AC ao desenvolver um sistema de transcrição (HAVE, 2007, p. 6). Desde então as transcrições se baseiam no modelo desenvolvido por ela que “não só transcreve o que foi dito, mas também como foi dito” (HAVE, 2007, p. 94). É importante salientar que, não usarei o modelo de transcrição sugerido por Gail Jefferson, uma vez que a fala aqui analisada é a da intérprete que oralizava tanto a sua fala quanto a dos alunos surdos. Por isso, soaria falso adotar tal método, já que a Libras é uma língua visual-motora e, para esta pesquisa, conto apenas com a gravação em áudio. Acreditamos que, com o auxílio da gravação em vídeo, seria possível fazer uma análise quanto à tomada de turnos, sobreposição de vozes, digo, sinais, pausas, entre outros (LEITE, 2008). Neste artigo, a transcrição não abordará o “como foi dito” e sim “o que foi dito”.

Já conhecida a importância da AC em conversas cotidianas e institucionais e entendido que é real a possibilidade de fazer tal estudo com dois alunos surdos e uma intérprete, pontua-se que o estudo focará o fenômeno reparo (HUTCHBY e WOOFFITT, 2004; SCHEGLOFF, 2007; HAVE, 2007). A seguir, analisamos a importância e as características desse evento, o reparo, na fala-em-interação institucional.

O reparo

O sistema de reparo é necessário para sustentar a intersubjetividade de uma interação, ou seja, é necessário para garantir a compreensão mútua que é estabelecida e negociada ao longo da interação entre os participantes. Em sala de aula tradicional, esta ocorrência mostra-se recorrente, devido o papel institucional do professor (intérprete) que instrui os alunos surdos.

Reparo não significa, pura e simplesmente, uma correção. Schegloff (2007, p. 100), Hutchby e Wooffitt (2004, p. 59) fazem questão de explicar as diferenças, mostrando que o reparo é mais amplo e envolve tarefas de formulação e reformulação da fala e não simplesmente limita-se à correção de algo quando este está errado. Hutchby e Wooffitt (2004, p. 59) afirmam que “há vários problemas na conversa: seleção errônea de palavras, deslizes da língua, falta de compreensão na escuta e/ou entendimento de palavras etc.”. Por isso, é o reparo que permite ao falante lidar com tais problemas de compreensão.

Durante uma interação há momentos em que precisamos reconstruir, reelaborar e reformular um segmento. Graças ao processo de reparo é possível atingir essa meta. O reparo serve para realçar melhor o que já foi dito, reparar algo, solicitar explicação, solicitar uma repetição, buscar palavras (hesitação), ou seja, está ligada à necessidade de manutenção da intersubjetividade entre os participantes da interação para solucionar e garantir a mútua compreensão. O reparo interrompe o curso da fala sem que se abandone o tópico.

Este sistema apresenta características específicas, dependendo de quem o inicia. Caso o reparo tenha sido iniciado pelo falante que proferiu a fonte do problema (FP), denomina-se auto-reparo, pois ele, o falante, inicia e promove o reparo. No entanto, se outro participante inicia o reparo, dando a chance ao falante da fonte problema rever sua fala, a este processo denominamos reparo efetuado pelo outro.

Segundo Schegloff (2007, p. 152), quase toda iniciação de reparo (IR) tende a ocorrer no mesmo turno onde tem a FP, no turno imediatamente após o da FP ou no turno seguinte a este. O autor ainda enfatiza que o reparo está ligado e pode ser caracterizado como um par adjacente.

Conforme Schegloff (2007, p. 13), o par adjacente é formado pela composição de dois turnos com falantes diferentes, além de ser organizado, ou seja, isto é um após o outro. Uma vez que o reparo interrompe a fala ou assunto em curso, este inicia uma sequência cujo objetivo é compreender a fala anteriormente proferida.

Schegloff (2007) afirma que, a maioria dos reparos são marcados por perguntas e que também se constituem first pair parts (a primeira parte do par adjacente, doravante 1º PPA) e o falante do turno problema é selecionado como próximo falante na tentativa de solucionar o reparo feito. Sendo assim ele produz o second pair part (segunda parte do par adjacente, doravante 2º PPA). Em outras palavras, o sistema de reparos é organizado por pares adjacentes. Estes, por sua vez, são representados por perguntas/respostas, cumprimento/cumprimento, oferecimento/aceite ou recusa, convite/resposta, pedidos de desculpa/perdão, ordem/execução (MARCUSCHI, 2001, p. 31). Esse mesmo autor afirma que:

[...] os pares podem ser tomados como indícios da existência de compreensão ou pelo menos de uma compreensão existente, na medida em que a segunda parte do par só pode ser produzida se a primeira parte foi, de alguma forma, entendida. Assim, seja qual for a natureza significativa da segunda parte do par, ela é um indicador de como os falantes analisam suas contribuições. (p. 32).

A seguir, explicamos com mais detalhes as diferenças entre auto-reparo e reparo iniciado pelo outro.

Autorreparo X reparo iniciado pelo outro

Dentro do arcabouço teórico que sustenta essa investigação da produção da fala-em-interação em contexto institucional (sala de aula), na qual dois alunos surdos discutem um texto em inglês com a intérprete, mereceram posição no corpo desse trabalho os estudos sobre a organização do reparo apresentada pela Análise da Conversação. Com base nisso, poderemos entender questões importantes relativas à construção da intersubjetividade e da interatividade nesse cenário. Sendo assim, ressaltamos as principais diferenças entre autorreparo (AR) e reparo iniciado pelo outro (RIO).

O primeiro, na maioria das vezes, se caracteriza por envolver o falante que profere a FP e que inicia o reparo na tentativa de resolver esse problema. Já o segundo, se limita a levantar o problema, mas deixa para o falante da FP a incumbência e/ou oportunidade de efetivar o reparo no turno seguinte.

Marcuschi (2001, p. 28), Schegloff (2007, p. 101), Have (2007, p. 133) expõem as principais técnicas de iniciação de RIO. São elas:

  1. solicitação de repetição por meio de iniciadores de reparo do tipo aberto, como por exemplo, hum?, ahn?, ei, micropausas;
  2. perguntas mais específicas que direcionam e focalizam a fonte do problema, como quem?, como?, onde?, quando?; o que?;
  3. repetição parcial ou total do turno anterior (FP) com entonação de pergunta;
  4. repetição parcial do turno acrescido de um pronome interrogativo ou partícula de pergunta (o número de quem? Aconteceu quando? Falar com quem?);
  5. possibilidade de compreensão do turno FP com uso da expressão “you mean X” (você quer dizer X), sendo X a tentativa de compreensão da fonte problema.

Segundo os autores Abreu (2003, p. 22-26), Barbosa (2003, p. 24-25), Hutchby e Wooffitt (2004, p. 61), Marcuschi (2001, p. 25) e Schegloff (2007, p. 101/102), considerando a possibilidade de iniciar um reparo e considerando as categorias auto-reparo e reparo iniciado pelo outro, temos os seguintes procedimentos:

  • Auto-reparo auto-iniciado: o falante da FP inicia e termina o reparo. É caracterizado por hesitações, pausas, que possibilita a reformulação da própria fala.
  • Auto-reparo iniciado pelo outro: o falante da FP tem a chance, a partir de sinalizações do falante do turno seguinte, de promover o reparo.
  • Reparo auto-iniciado e efetuado pelo outro: ocorre quando o falante do turno problema emite sinais (verbais ou não) e explicitamente pede ajuda para o ouvinte para concluir o reparo, sendo assim, o outro falante contribui com a efetivação do reparo.
  • Reparo iniciado e efetuado pelo outro: o ouvinte inicia e efetua o reparo na fala do outro. Esse procedimento é tido como despreferido (SCHEGLOFF, 2007) na conversa cotidiana por envolver uma correção na fala do outro.

A seguir analisamos três exemplos de auto-reparo iniciado pelo outro (mais recorrente nos dados) e um exemplo de reparo iniciado e efetuado pelo outro durante a explicação e/ou entendimento do texto escrito na língua inglesa. Antes, porém, faremos uma exposição do contexto da pesquisa, quem são os participantes e os instrumentos utilizados.

Análise dos dados

Pelo fato das pesquisadoras trabalharem na rede municipal de ensino, uma escola municipal foi escolhida. Ela localiza-se na região sudoeste de Goiânia, no Setor União. A sala pesquisada pertence ao EAJA (Educação de Adolescentes, Jovens e Adultos) pertencente a 8ª série ou 9º ano noturno. A escola, conforme o nome indica, contém adolescentes, jovens e adultos, ou seja, uma faixa etária bem diversificada. Esta turma tem 34 alunos matriculados, no qual três são de inclusão: dois surdos e um deficiente visual.
Frequentamos seis aulas entre os meses de setembro e novembro de 2008. A sétima aula foi destinada às entrevistas e a responder ao questionário. Apenas duas foram registradas em áudio por limitações técnicas. Foram usados instrumentos como a gravação em áudio, a entrevista oral e por escrito, com a finalidade de esclarecer e aprofundar algumas questões observadas, e o diário, utilizado por nós, pesquisadoras, para registrar nossas impressões acerca de acontecimentos típicos desta sala de aula em particular. Neste artigo, utilizamos a transcrição de uma aula, a que ocorreu no dia 14 de outubro de 2008.
Participaram deste estudo dois alunos surdos e uma intérprete, inseridos numa sala de aula regular, com alunos ouvintes e a professora de inglês. O foco será dado a estes três participantes (intérprete e dois surdos), para entendermos como ocorre o reparo nesse contexto. Para preservar suas identidades, serão usados nomes fictícios escolhidos por eles. O quadro a seguir fornece maiores informações sobre os participantes deste estudo:

NOME FUNÇÃO OBSERVAÇÕES
Alice Intérprete É formada em pedagogia, especialista em direitos humanos, alfabetização e psico-pedagogia. Trabalha com educação há 22 anos e com ensino e tradução de Libras, há três anos.
Eliana Aluna surda É casada com Elias. Ela perdeu a audição antes de completar dois anos de idade. Estuda inglês há três anos. Com exceção do esposo, apenas a mãe sabe Libras (tem mais dois irmãos que não são surdos). Na língua inglesa, diz que acha mais importante aprender o léxico, pois conforme explicado por ela “é mais fácil traduzir para Libras”.
Elias Aluno surdo É casado com Eliana. Ele perdeu a audição antes de completar três anos de idade. Estuda inglês há três anos. Com exceção da esposa, apenas a mãe sabe Libras (tem mais quatro irmãos e nenhum é surdo). Acha mais importante aprender o vocabulário da língua inglesa.

Quadro 1 – Informações sobre os participantes da pesquisa

A pedido das pesquisadoras, à medida que a intérprete fazia os sinais em Libras, ela também falava/oralizava tanto a sua fala quanto a dos dois alunos surdos, pois as pesquisadoras não tem conhecimentos de Libras. Desta forma toda a transcrição é baseada na fala da intérprete, ou seja, sua voz é a voz dos dois alunos surdos também.

Ressaltamos que em alguns momentos a intérprete recorreu à datilologia, que consiste em soletrar palavras, como por exemplo, “c-o-r-t-a-r”. Tal recurso fora usado em momentos em que os alunos não compreendiam o sinal em Libras, talvez porque ainda não o conhecia, visto que esses alunos não têm o domínio da Língua Brasileira de Sinais, sendo assim, ainda estão em processo de aprendizagem (fato presente nos dados desse artigo). Foram utilizados os seguintes códigos nas análises a seguir:

CÓDIGOS INDICA...
[itálico] Comentários da pesquisadora
FP Fonte do problema
IR Iniciação de reparo
1º PPA Primeira parte do par adjacente
2º PPA Segunda parte do par adjacente
Datilologia (alfabeto manual), letra por letra, separadas por hífen. Exemplo: c-o-r-t-a-r

Quadro 2 – Códigos utilizados na transcrição dos dados

Iniciaremos nossa análise pelo Recorte A, momento em que temos a participação dos três sujeitos observados. A tarefa da aula consistia na leitura e discussão de um texto intitulado “Have you been taking care of your planet?”, com o qual os alunos discutiam o que o homem tem feito para destruir o planeta, bem como maneiras de salvá-lo. Logo após o texto há um questionário com duas questões, e cada uma apresenta três sub-questões 2. No horário seguinte? Alice, Eliana e Elias estão na sala de aula, cuja matéria era de inglês. Essa aula ocorreu numa terça-feira, dia 14 de outubro de 2008, entre 19h40min e 20h30min. Em seguida, seria o intervalo (recreio). A professora de inglês solicitou à turma que formassem grupos para a leitura do texto (a mesma entregou uma folha para cada aluno). Então, ela explicou o que era para fazer em cada questão. Em seguida, iniciaram-se as discussões nos grupos. Durante esse momento a intérprete explicava para os alunos surdos, o que a professora de inglês estava explanando. Uma vez terminado os esclarecimentos, a intérprete e os alunos surdos começam a discutir o texto e também as questões referentes a ele. Esse recorte partiu da explicação da questão 2, que solicitava que retirassem do texto quatro palavras cognatas. A intérprete explanou o que era cognato, forneceu exemplos e os alunos fizeram algumas tentativas frustradas, até que Eliana consegue achar um exemplo, que está exposto a seguir no recorte A.

A01   Eliana Planeta [Eliana aponta para “plant” presente no texto em inglês e, em seguida, faz o sinal de “planeta” em Libras]
A02 FP Alice Planeta. Muito bem.
A03 IR
1º PPA
Elias Planeta?
A04 Alice Alice É, planeta.

Quadro 3 - Recorte A

O objetivo era achar no texto palavras em inglês que se pareciam com palavras em português (cognatas). Em A01, Eliana consegue achar a palavra “planet” que é um cognato por se parecer com o seu respectivo em português, “planeta”. Portanto, aponta para ela no texto (planet) e, logo após, sinaliza em Libras, fazendo-se a tradução Inglês – Libras.

No turno A02, a intérprete confirma a resposta de Eliana. Porém, esse mesmo turno representa a fonte do problema (FP), pois no turno seguinte (A03), Elias faz uma iniciação de reparo (IR) repetindo a FP em tom de pergunta. Esse momento também representa a primeira parte do par adjacente (1º PPA),que é solucionado pela segunda parte do par adjacente (2° PPA), no turno A04, em que Alice confirma “É, planeta”. Nesse recorte não houve uso de datilologia (soletragem).

Podemos inferir que Elias, ou apresenta dificuldade no entendimento do exercício que solicitava quatro exemplos de palavras cognatas presentes no texto ou que ele não compreendeu o sinal de “planeta” em Libras. Com a IR, Elias fez uma solicitação de repetição e/ou confirmação do que fora falado, digo, sinalizado. Esse exemplo exposto no recorte A se caracteriza como um reparo iniciado pelo outro (RIO), já que Elias iniciou o reparo na linha 03, possibilitando que o falante da FB, da linha 02, confirmasse o questionamento/reparo na linha 04. Em outras palavras, pela repetição parcial ou total com entonação de pergunta do turno que apresenta a FP, Elias confirma sua dúvida.

Passamos agora, para mais um exemplo de fala-em-interação, na qual Elias não compreende uma expressão em inglês presente no texto. Para solucionar essa dúvida de LE, Elias solicita a tradução para a LM (Libras).

B01   Elias [Aponta para a frase no texto “cut down trees” e pergunta o que é]
B02 FP Alice É cortar. Em português. [faz o sinal em Libras]
B03 IR
1º PPA
Elias Como? [Parece não compreender]
B04 2º PPA Alice C-o-r-t-a-r. Cortar as árvores. Cortar.
B05   Elias [Repete o sinal de “cortar” em Libras, duas vezes.]

Quadro 4 - Recorte B

Este recorte mostra mais um exemplo de reparo iniciado pelo outro. No turno B01, Elias faz uma pergunta, um questionamento referente a uma frase no texto “cut down trees”. No turno seguinte, B02, a intérprete sinaliza, em Libras, sua tradução em Português, no caso, “cortar”. No entanto, Elias faz uma iniciação de reparo no turno B03 usando uma pergunta específica que focaliza a fonte do problema: “como?”. Esse artifício é descrito por Schegloff (2007, p. 101) como sendo uma das cinco técnicas de iniciação de reparo pelo outro. Este por sua vez, também se configura no 1º PPA. Fato que também foi explicado por esse autor ao afirmar que o sistema de reparo pode ser caracterizado como um par adjacente, por se constituir de dois turnos, com falantes diferentes e de forma organizada (um turno após o outro).

Com a pergunta “Como?”, Elias faz uma iniciação de reparo selecionando, assim, auxilia o próximo falante na tentativa de solucionar o reparo feito. O turno seguinte, B04, é então o 2º PPA. Aqui, a intérprete recorre à datilologia - soletragem- da palavra “cortar” seguida do seu respectivo sinal em Libras. No turno B05, Elias parece aprender e/ou compreender o sinal (de cortar, na língua de sinais) repetindo-o duas vezes. Este recorte é muito interessante, pois indica que, além de aprender uma expressão em inglês, ele aprende um sinal na sua língua materna, Libras. A aula de inglês serve para a aprendizagem não só da língua inglesa, como também da Libras.

Diferente do recorte A e B, apresentados anteriormente, o próximo recorte exemplifica um tipo de reparo caracterizado como reparo feito e corrigido pelo outro. Embora este tipo de reparo seja caracterizado como despreferido na conversa cotidiana (SCHEGLOFF, 2007), em ambiente escolar mostra-se natural, devido ao papel de instrutor do professor, no caso da intérprete. Vejamos a seguir.

C01   Eliana [Aponta para “plant” no texto]
C02   Alice Isso. „Plant‟ [apontando, pois é uma palavra em inglês] é o que? [Com exceção de “Plant”, todo o restante do diálogo é sinalizado em Libras]
C03 FP Eliana Árvore.
C04 Reparo iniciado e efetuado pelo outro Alice Não. Plant [apontando] não é árvore. É plantar.
C05   Eliana Plantar. Plantar.

Quadro 5 - Recorte C

Ainda discutindo sobre as palavras cognatas presentes no texto, Eliana consegue achar mais uma, no caso, “plant” (turno C01). No turno seguinte, a intérprete a elogia e, para conferir se “plant” é mesmo cognata, por se parecer com a palavra “plantar”, Alice pergunta o que “plant” significa. O turno C03 apresenta a FP, pois Eliana demonstra não saber o sinal de “plantar” em Libras, dizendo/sinalizando em seu lugar, “árvore”. É no turno C04 que temos um reparo iniciado e efetuado pela intérprete. Aqui a intérprete a corrige e imediatamente mostra o sinal em Libras, de “plantar”. Isto quer dizer que ela iniciou e efetuou o reparo na fala de Eliana que produziu um sinal equivocado.

Para finalizar, analisamos o recorte D, que apresenta mais uma exemplo de reparo iniciado pelo outro e também de aquisição da Libras a partir de uma aula de inglês. Eliana fornece mais um exemplo de palavra cognata e a mostra para a intérprete.

D01   Eliana [aponta para “protect”]
D02 FP Alice Isso. Protect [apontando] o que é?
D03 IR
1º PPA
Eliana [Sabe o que significa, mas não sabe o sinal em Libras. Portanto, pergunta, em Libras, como é o sinal para proteger]. Como é em Libras?
D04 2º PPA Alice Proteger.
D05   Eliana Proteger. P-r-o-t-e-g-e-r. Proteger.

Quadro 6 - Recorte D

O turno D02 apresenta a fonte do problema, pois a intérprete pede a confirmação do significado de “protect”. O turno seguinte representa a iniciação de reparo, pois Eliana não sabe como dizer “protect” em Libras e claramente pede a ajuda da intérprete. D04 é o que denominamos de segunda parte do par adjacente, a resposta da pergunta feita na 1º PPA (D03). Para certificar o entendimento, Eliana, além de repetir o sinal, confirma a grafia, soletrando a palavra (datilologia).

De uma forma geral, o que podemos observar com estes excertos de fala é que tudo começou com a explicação da palavra „cognato‟ e também de uma expressão em inglês que não conheciam. Em todos os recortes o fenômeno reparo foi essencial, não só para a compreensão mútua e construção da intersubjetividade entre os participantes como também para esclarecimento de sinais em Libras. O reparo iniciado pelo outro foi mais recorrente, pois a intérprete como instrutora, orientava e ensinava os alunos. No momento seguinte, teço as implicações e considerações acerca dessa pesquisa.

Considerações finais

Admitimos que quando ingressamos na disciplina “Análise da Conversação” oferecida pelo Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística da Universidade Federal de Goiás, no primeiro semestre de 2009, não conseguíamos relacionar esta matéria com o objeto de estudo: o ensino e aprendizagem de inglês com alunos surdos.

A princípio questionava-nos: como fazer uma análise da conversação se os alunos surdos não conversavam (oralmente)? Este estudo não diz respeito somente às línguas orais? Como poderíamos aplicar esse aprendizado na fala-em-interação de alunos surdos? Estas dúvidas podem ter sido as mesmas inquietações do leitor, quando teve o primeiro contato com o título deste artigo.

No entanto, após as leituras sugeridas nesta disciplina (COULTHARD, 1990; HUTCHBYe WOOFFITT, 2004; MARCUSCHI, 2001; SCHEGLOFF, 2007; TANNEN, 1986; HAVE, 2007) compreendemos que, a atividade conversacional de surdos, aprendendo inglês no contexto da sala de aula, apresenta aspectos semelhantes à conversação de pessoas ouvintes, a diferença é que a primeira é gestual-visual e a segunda oral.

Este estudo mostra que os alunos surdos inseridos numa escola inclusiva, conseguem e podem aprender a língua inglesa e também a Libras e, por meio do sistema de reparo, eles questionam, solicitam repetições, confirmações, são corrigidos quando produzem um sinal equivocado Desse modo, o uso do mecanismo reparo em sala de aula serve para corrigir, orientar, reformular e organizar o processo comunicativo, pondo em relevo as dúvidas e incompreensões sobre o texto em inglês.

O sistema de reparo é necessário para sustentar a intersubjetividade de uma interação e garantir a mútua compreensão entre os participantes. Dessa forma, percebe-se que é o reparo que permite ao falante lidar com esses problemas de compreensão. Foi o caso mostrado nos recortes A, B, C e D, pois os alunos questionavam palavras em inglês presente no texto e, ao pedir confirmação ou repetição da tradução em Libras, compreendiam não só o propósito do texto como também adquiriam alguns sinas da sua língua materna.

Este artigo busca trazer importantes contribuições teóricas, produzindo um conhecimento no viés da educação bilíngüe, em que o surdo deve adquirir como língua materna, a língua de sinal e, como segunda língua, no caso do Brasil, o Português. Isto permite que o surdo assuma sua identidade e adquira essas línguas desde cedo.

Acredito que a experiência aqui relatada venha contribuir para ampliar a compreensão acerca do fenômeno e de seus desdobramentos no contexto do ensino e da aprendizagem de língua inglesa com alunos surdos, inseridos numa sala de aula tradicional, em escola inclusiva.

Convidamos professores e pesquisadores a desenvolverem estudos centrados não somente no fenômeno reparo, mas também em outros, como a troca de turnos, alongamentos de vogal, sobreposição de vozes, pausas, falas simultâneas entre outros.

Notas

1 A datilologia é a soletração de uma palavra usando o alfabeto manual de Libras. Pode servir para palavras estrangeiras, nomes próprios que ainda não tenham recebido o "apelido" em sinal, nomes de lugares, palavras novas e quando algum sinal em Libras não fora compreendido e que precise recorrer à tal soletração para esclarecimentos. Na Língua Brasileira de Sinais – Libras, podemos nos referir ao animal, por exemplo, usando a datilologia, alfabeto manual onde cada sinal corresponde a uma letra, mas também podemos utilizar um sinal específico para a palavra em questão, o qual chamamos de “sinal da palavra” (LEITE, 2004).
2 O texto utilizado nesta aula encontra-se no Anexo A (Figura 1).

Bibliografia

ABREU, Caroline Soares. A organização do reparo iniciado e levado a cabo pelo outro na conversa cotidiana e na sala de aula tradicional em português brasileiro. 2003. Dissertação (Mestrado em Linguagem no Contexto Social) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Faculdade de Letras, Porto Alegre.

BARBOSA, Begma Tavares. Especialidades formais na organização do reparo: um estudo da orientação da fala para a atividade institucional. 2004. Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Letras, Rio de Janeiro.

BRASIL. Lei Federal n. 10.436 de 24 de abril de 2002. Dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais – Libras. Brasília/DF, 2002.

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FIGUEIREDO, Francisco José. Quaresma de. A aprendizagem colaborativa de línguas. Goiânia: Ed. Da UFG, 2006.

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HUTCHBY, Ian.; WOOFFITT, Robin. Conversation Analysis: principles, practices and applications. Cambridge: Policy Press, 2004.

LACERDA, Cristina B. F. O intérprete educacional de língua de sinais no ensino fundamental: refletindo sobre limites e possibilidades. In: LODI, A.C.E. et al. (org.). Letramento e minorias. Porto Alegre: Mediação, 2002. p. 120-128.

LEITE, Emeli Marques Costa. Os papéis do intérprete de Libras na sala de aula inclusiva. Coleção Cultura e Diversidade. Rio de Janeiro: Editora Arara Azul, 2004.

LEITE, Tarcísio de Arantes. A. A segmentação da língua de sinais brasileira (libras): um estudo lingüístico descritivo a partir da conversação espontânea entre surdos. 2008. Tese (Doutorado) - Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências humanas.

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SCHEGLOFF, Emanuel A. Sequence organization in interaction: a primer in conversation analysis. Vol. 1. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.

TANNEN, Deborah. That‟s not what I meant: how conversational style makes or breaks your relations with others. New York: Ballantine Books, 1986.

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