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Renato Dente Luz
Renato Dente Luz
Psicólogo
Em busca da aparição de surdos na contemporaneidade
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Publicado em 2013
In: I Simpósio Internacional de Estudos sobre a Deficiência, São Paulo. Anais eletrônicos do I Simpósio Internacional de Estudos sobre a Deficiência.
Renato Dente Luz
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Resumo

O presente trabalho é fruto da pesquisa realizada durante o doutorado do autor. Partindo de um profundo e duradouro laço afetivo com os surdos almejou-se melhor compreender, no campo da psicologia social, as condições ofertadas de existência plena e digna para estes amparando-se no efeito no autor das narrativas de alguns pais de surdos. A partir do encontro entre a trajetória do autor e as destes pais, buscou-se apontar, por meio da criação autoral de crônicas imagéticas (cenas), alguns dos principais desafios de quem experiencia a condição surda na contemporaneidade. Como resultados obtidos durante todo este processo encontramos que os surdos anseiam por melhores condições de aparição especialmente em quatro tópicos inter-relacionados: identificação exata de sua condição orgânica e que esta não os negue na demanda apresentada por seu rosto; garantia da oferta de um instrumento linguístico pleno, acessível e cotidiano; acesso aos saberes veiculados e facilitados por um Outro; e amparo humano que sustente a construção de sua presença singular no mundo.

1. Introdução

O trabalho aqui apresentado é um dos frutos da trajetória do autor junto às pessoas surdas, em especial, é decorrente do ápice deste processo sob a forma de sua tese de doutorado na área da psicologia social. (LUZ, 2011)

A partir de um forte laço inicial e de uma duradoura presença junto a esta população, o autor pôde experienciar diversos acontecimentos que foram gradativamente marcando-o psíquica e politicamente ao longo dos anos. Um dos efeitos mais concretos deste conjunto de experiências foi o desejo de realizar uma pesquisa junto a pais de surdos que se amparasse no diálogo e na escuta de suas trajetórias parentais e que pudesse identificar mais aprofundadamente quais seriam as principais faltas humanas experienciadas atualmente por aqueles que vivem a condição surda. Do encontro da trajetória do autor junto aos surdos e das trajetórias de alguns de seus cuidadores desejava-se identificar os principais impedimentos éticos, intersubjetivos e contextuais presentes na contemporaneidade para a realização plena e digna dos humanos que vivem a surdez como traço psicossomático.

Antes de apresentar aqui os principais dados encontrados a partir desta pesquisa, faz-se necessário, antes, a apresentação da visão de homem/mundo que embasou este processo e os recursos metodológicos usados para isso, concentrados nos seguintes conceitos: condição humana, aparição, três dimensões da condição humana, anseio comunicante, condição surda, narrativa e cena.

2. Nossa condição humana: Aparição e comunicação

Para conseguirmos pensar as lacunas nas ofertas intersubjetivas comumente dispostas para apoiar a realização humanamente plena de quem vive a condição surda é preciso, primeiramente, definirmos o que entendemos por condição humana. Neste sentido, uma pequena crônica literária chamada “A viagem” nos serve de suporte inicial:

Oriol Vall, que cuida dos recém-nascidos em um hospital de Barcelona, diz que o primeiro gesto humano é o abraço. Depois de sair ao mundo, no princípio de seus dias, os bebês gesticulam, como que buscando alguém. Outros médicos, que se ocupam dos já vividos, dizem que os velhos, ao fim de seus dias, morrem querendo alçar os braços. E assim são as coisas, por mais voltas que se queira dar à questão, e por mais palavras que se digam. A isso, simples assim, se reduz tudo: entre dois bateres de asas, sem maiores explicações, transcorre a viagem. 1 (GALEANO, 2007: 2)

Encontram-se implícitos nesta breve e poética narrativa alguns elementos que consideramos essenciais ao pensarmos os aspectos componentes da experiência humana, a saber: a vida como uma viagem, como a travessia de um alguém em um certo tempo-espaço; a vida como acontecimento frágil e finito; e, em especial, a vida como o acontecimento de um alguém que tem sede de outros humanos que o acolham e recebam no mundo, indicando nosso ontológico anseio por morada humana a fim de alcançar uma existência mais plena, ou seja, para experienciar aparição singular e recorrente entre Outros. Por este viés, a vida seria um acontecimento, sobretudo, ético, singular, intersubjetivo e apoiado no tempo-espaço.

Livremente inspirados em alguns autores das ciências humanas (LEVINAS, 1988; GEERTZ, 1989; SAFRA, 1999; WINNICOTT, 2000; GONÇALVES FILHO, 2007; ARENDT, 2009), chamamos a estes aspectos que consideramos fundantes da nossa experiência no mundo comum de três dimensões da condição humana e à mais humana de nossas conquistas intersubjetivas de aparição.

A aparição é aqui entendida como uma das maiores manifestações de nossa singularidade, a que revela um de nossos maiores anseios humanos que é o por inserção criativa, psicossomática e única do nosso eu no mundo, mas que depende de testemunho humano palpável e de acolhida ética. É o acontecimento de si no nós em situação, o que muitos chamam de uma vida digna, uma vida que vale a pena, não somente uma vida biológica. Trata-se de um querer humano central, uma manifestação psicossocial de nossa paradoxal e frágil condição humana: “[...] é a realização plena e criativa de si no aqui-agora – um espaço e um tempo específicos e presentes – a partir de experiência ética, sensorial, afetiva, linguística e cultural ofertada pela presença de um Outro responsável por mim enquanto um alguém com rosto”. (LUZ, 2011: 61)

Tal qual outros fenômenos que manifestam o humano no mundo, a aparição acontece a partir de três dimensões dialeticamente articuladas. A primeira delas chamamos de dimensão ética, a que nos revela a necessidade de suporte humano e sensível para nossa travessia pela vida. A ética, aqui, é o recebimento incondicional de um alguém no mundo como ser único e irrepetível, como um rosto a ser acolhido independentemente de seus atributos materiais, orgânicos, culturais etc: “É ético o reconhecimento que transcende as características objetivas de uma pessoa. É ética a constatação de que em um corpo humano há um alguém”. (LUZ, 2011: 42) Por este viés encontramos a explicitação de nosso anseio por encontrar no mundo uma balsa-sustentação para nossa viagem, a sustentação humana ao longo do tempo de um alguém único que é reconhecido intersubjetivamente como tal. Assim, os outros humanos, o Outro, seriam amparo único e insubstituível para nossa travessia digna pelo mundo. Esta acolhida seria a experiência humanizante primordial, a mais vital e subjetivante delas.

Ocorre que um alguém, enquanto eticamente experiencia recepção humana, gradativamente é subjetivado e pode vir a realizar mais plenamente seu potencial si-mesmo, ou seja, um alguém eticamente recebido no mundo, com a passagem do tempo, pode experienciar, enquanto acontecimento intersubjetivo, sua existência entre Outros de um modo mais ativo e consciente. São experiências psicossomáticas possíveis, do ponto de vista da singularidade, a partir de específico aparato orgânico-sensorial. Pelo viés desta segunda dimensão, a dimensão subjetiva, vemos que a realização criativa de um si-mesmo ocorre a partir de sua materialidade corporal única no mundo humano, de acolhida ética de seu psicossoma, da experiência do singular a partir do plural que se dá da esfera privada paulatinamente para a esfera pública: “A ética enquanto responsabilidade por outrem – no sentido levinasiano – ampara a elaboração do mundo e de si no corpo singular que é psicossoma – no sentido winnicottiano – constituindo este si-mesmo da aparição. O alguém da aparição precede e sustenta o si-mesmo da aparição”. (LUZ, 2011: 48)

Já a terceira dimensão de nosso acontecimento no mundo seria a dimensão situacional, na qual podemos perceber que o mundo e o Outro com os quais nos deparamos desde que nascemos não são genéricos. Assim, nós estamos em situação, em época e lugar definidos, os quais são experienciados especialmente por meio dos Outros que nos servem de alimento humano. Nesta dimensão estaria revelada a base concreta, a cultura, o idioma específico a partir dos quais somos subjetivados. Por este viés podemos identificar melhor as condições contextuais para a realização de um alguém em si-mesmo:

Quem aparece, aparece em lugar e época específicos. Aparição não é acontecimento que paira sobre uma realidade, não surge em situação abstrata, em contexto genérico. Demanda presença de pessoas que eticamente consideram um ser humano como um alguém, ou seja, demanda Outros que gestam em ethos humano a aparição. E estes o fazem, necessariamente, a partir de um tempo e espaço definidos, o fazem como Outros que portam modos de ser culturalmente forjados e singularmente expressos. (LUZ, 2011: 57)

Embora façamos uma separação didática a fim de compreendermos melhor tais três dimensões, como dissemos antes pensamos que elas estão, na verdade, dialeticamente relacionadas, manifestando-se de modo articulado:

É pelo reconhecimento ético de um ser humano enquanto um alguém com rosto – dimensão ética – que uma subjetividade constitui-se até a sua existência enquanto um si-mesmo entre Outros – dimensão subjetiva – que são culturalmente condicionados e estão, como este alguém, em um contexto específico – dimensão situacional. (LUZ, 2011: 61)

Por este viés da vida como viagem finita, do nosso anseio por aparição e das três dimensões da condição humana queremos explicitar que o ser humano é um acontecimento em contínuo movimento e não mero fruto de determinações naturais ou sociais. Ele é ente singular que almeja acontecimento único a partir de sua corporeidade, de certo aqui-agora e específicos Outros.

Embora o ser humano esteja em busca dessas experiências de realização plena entre Outros, é preciso enfatizar que em nossas vidas experienciamos diversas falhas neste processo. Neste caso, poderíamos falar em alguma aparição impedida/dificultada. Aliás, são muitos os fenômenos psicossociais estudados pelas ciências humanas que revelam significativo impedimento de aparição, como por exemplo quando experienciamos a falta de acesso pleno a um idioma, no quadro psíquico falso-self, nas experiências intersubjetivas de reificação, de humilhação social, de desenraizamento, da educação bancária, de estigmatização, de preconceito etc. A essas rupturas da experiência de aparição podemos combater no plano político e enquanto uma comunidade eticamente orientada ao longo do tempo desde que identifiquemos e transformemos consistentemente os contextos humanos que alimentam estas falhas suportivas.

Cabe ainda dizer - especialmente neste nosso contexto de tentativa de compreensão dos processos psicossociais vividos pelas pessoas surdas - que há um anseio constituinte do humano e da experiência de aparição absolutamente central em todos nós que é o anseio comunicante. (LUZ, no prelo) Uma outra crônica de Eduardo Galeano pode nos auxiliar na compreensão deste, uma chamada “Celebração da voz humana/2”:

Tinham as mãos amarradas, ou algemadas, e ainda assim os dedos dançavam, voavam, desenhavam palavras. Os presos estavam encapuzados: mas inclinando-se conseguiam ver alguma coisa, alguma coisinha, por baixo. E embora fosse proibido falar, eles conversavam com as mãos. Pinio Ungerfeld me ensinou o alfabeto dos dedos que aprendeu na prisão sem professor: - Alguns tinham caligrafia ruim – me disse -. Outros tinham letra de artista. A ditadura uruguaia queria que cada um fosse ninguém: nas cadeias e quartéis, e no país inteiro, a comunicação era delito. Alguns presos passaram mais de dez anos enterrados em calabouços solitários do tamanho de um ataúde, sem escutar outras vozes além do ruído das grades ou dos passos das botas pelos corredores. Fernández Huidobro e Mauricio Rosencof, condenados a essa solidão, salvaram-se porque conseguiram conversar, com batidinhas na parede. Assim contavam sonhos e lembranças, amores e desamores; discutiam, se abraçavam, brigavam; compartilhavam certezas e belezas e também dúvidas e culpas e perguntas que não têm resposta. Quando é verdadeira, quando nasce da necessidade de dizer, a voz humana não encontra quem a detenha. Se lhe negam a boca, ela fala pelas mãos, ou pelos olhos, ou pelos poros, ou por onde for. Porque todos, todos, temos algo a dizer aos outros, alguma coisa, alguma palavra que merece ser celebrada ou perdoada. (GALEANO, 2002: 23)

Somos seres comunicantes. Todos nós. E esta é uma faceta central para o acontecimento de nossa aparição. Precisamos de experiências de comunicação consigo e com o Outro pois temos algo a dizer, temos muita sede de diálogo. Como as demais expressões de nossa condição humana, a realização deste anseio comunicante ocorre por meio de bases ética, psicossomática e situacional - um idioma específico, por exemplo -, compondo o processo de formação singular dos recursos comunicativos significativos para o acontecimento pleno do psicossoma único que cada um de nós habita. É extremamente humana a incessante busca comunicativa.

3. A condição surda

Entendemos por surdo a pessoa que:

como as demais, sofre as vicissitudes da condição humana e que, do ponto de vista de sua corporeidade, apresenta, a partir de algum momento de sua travessia pela existência humana, uma significativamente baixa experiência sonora de mundo. Esta pessoa, como todos os humanos, se organiza criativamente a partir da sensorialidade disponível em seu aparato orgânico – neste sentido, cabe afirmar que cada surdo é, inevitavelmente, diferente de um outro surdo. Quanto mais intensamente e mais cedo estiver presente esta sensorialidade surda, mais a realização de seu anseio comunicante dependerá, especialmente, das experiências visuais e motoras. (LUZ, no prelo)

Apresentando uma especificidade sensorial, os surdos, tal qual definidos acima, vivem uma condição surda geral que é singularmente experienciada dentro de suas variáveis, como um ponto de partida psicossomático relacionalmente significado e a partir do qual eles buscam seu acontecimento humano no mundo. Neste sentido, antes até de se manifestarem enquanto uma minoria linguística, o que os surdos são, essencialmente, é uma minoria sensorial que historicamente foi normatizada por processos sócio-político-educacionais adaptativos e violentos do ponto de vista ético, o que acarretou em rupturas graves e sistemáticas de suas experiências de aparição plena entre Outros. (LANE, 1984; SÁNCHEZ, 1990; LE PAYS DES SOURDS, 1992; SACKS, 1998; LUZ, 2003)

4. Caminho metedológicos da pesquisa: Narrativa e cena

Partindo deste conjunto teórico muito resumidamente descrito acima, a pesquisa realizada durante o doutorado em torno da compreensão das condições de aparição de surdos na contemporaneidade pautou-se em articuladas referências metodológicas (BOSI, 2003; BOURDIEU, 1997), centradas, em especial, nos conceitos de narrativa e de cena.

Por narrativa entendemos a nomeação e compartilhamento de saberes sobre a vida enquanto experiência única de travessia, uma modalidade comunicativa - ficcional ou não-ficcional - privilegiada para a expressão do singular/situacional/universal e que pode se apresentar por meio de diferentes modalidades: escrita, falada, sonora, física, visual, corporal etc. (LUZ, 2011, 2013) No contexto da nossa pesquisa e dos conceitos base que a ampararam, a narrativa seria um importante dispositivo facilitador de experiências de aparição:

Narrar é combater o cotidiano desumanizador que oprime homens e os reduz a coisas. É, além de processo transformador de si, convite para os interlocutores ingressarem em uma jornada também singular de significações das experiências pessoais. É, portanto, espaço experiencial de resgate, acolhimento e asseguramento do humano. (LUZ, 2011: 18)

Partindo da importância deste tipo de expressão comunicativa, a pesquisa realizada durante o doutorado buscou facilitar e registrar as narrativas de alguns pais de surdos - um casal e duas mães; pais de três surdas mulheres com idades, na época, entre 18 e 40 anos - solicitando que estes contassem livremente suas trajetórias neste papel parental, os principais desafios enfrentados, as conquistas, as dores, dramas, dúvidas e preocupações quanto ao futuro das filhas surdas. A partir destas narrativas, o presente autor, quando no momento do registro por escrito da pesquisa, buscou resgatar também suas próprias experiências significativas entre os surdos, a fim de potencializar uma melhor revelação das condições de aparição ofertadas para esta população na atualidade.

Influenciado pelo anseio de aparição presente no próprio autor e também nos pais-narradores e marcado pelos recursos expressivos encontrados no cinema, na literatura e nas ciências humanas que foram paulatinamente singularizados por ele, desenvolveu-se, neste processo dialógico, como forma de tentar narrar impactantemente algumas das questões centrais que indicavam ser experienciadas pelos surdos, o conceito de cena. Trata-se de um dispositivo narrativo-analítico, uma modalidade comunicativa autoral, por escrito, curta, imagética e não-ficcional composta por um autor, personagens e acontecimentos singulares em situação que acreditamos poder ser usado como meio para estudar as condições de aparição de um alguém ou grupo humano em reflexões nas ciências humanas e que poderia também, em potência, produzir aparições: a do autor, a dos personagens e a dos leitores. (LUZ, 2011, 2013)

De todo este processo da nossa pesquisa em torno da identificação das condições para a recorrente aparição de surdos na atualidade, dois tipos de cenas surgiram: as cenas surdas introdutórias, em número de cinco, derivadas das experiências do próprio autor em relação aos surdos; e as cenas surdas parentais, em número de doze, desenvolvidas literariamente a partir das narrativas dos pais entrevistados durante a pesquisa de campo. Foi a partir, especialmente, do processo autoral da elaboração científico-literária destas breves crônicas imagéticas e de sua significação crítica que foram amadurecidos os resultados finais da pesquisa.

5. Fragmentos narrativos da pesquisa junto aos surdos e seus pais: Cenas surdas

Abaixo, a fim de ilustrar brevemente este processo narrativo-analítico, algumas destas cenas surdas produzidas durante a pesquisa, primeiramente uma das cenas introdutórias (baseada em GROCE, 1985), seguida de duas das cenas surdas parentais:

Descobrindo Martha´s Vineyard,
Estados Unidos, 1978

Martha´s Vineyard é uma pequena ilha localizada na costa sul do estado norte-americano de Massachusetts, no Oceano Atlântico. Algumas décadas antes, em uma de suas vilas, Chilmark, havia cerca de dez pessoas surdas em uma população de 250 habitantes. Por mais de duzentos anos, foi comum nascerem, aqui, pessoas surdas.

Foi por isso que Alexander Graham Bell, filho e marido de mulheres surdas, muito preocupado com a formação de uma variedade surda da raça humana 2, diversas vezes visitou esta ilha na década de 1880. Para provável alívio deste, setenta anos depois não havia mais surdos no local que pudessem reproduzir-se entre si. O último morreu em 1952.

Nesta mesma ilha vive, hoje, Gale Huntington, ouvinte, que era apenas uma pequena criança quando o século XX começava. Com seus mais de oitenta anos, ainda ama muito esta sua terra e praticamente a todos os ilhéus conhece. Não por acaso, hoje é editor emérito de um importante periódico local. Também não por acaso, realiza com tranquilidade e grande prazer uma de suas atividades favoritas: acompanhar os visitantes de fora que na ilha querem pisar. Por realmente habitar esta simples e peculiar localidade, como poucos ele sabe fazer um forasteiro sentir-se em casa por aqui.

Em um desses dias de visita é a curiosa Nora Groce quem ele acolhe. Ela quer saber sobre os surdos que na ilha viveram. Muitos deles, inclusive, Bell havia estudado genealogicamente. De dentro do carro, Gale aponta, em certo momento, para a casa onde morou o falecido Jedidiah e, com segurança, comenta:

– Ele era um bom vizinho. Ele costumava pescar e trabalhar na fazenda. Ele também era um dos melhores pilotos de barco pequeno a remos na ilha, e isso era um grande feito, considerando que ele tinha apenas uma mão.
– O que aconteceu com a outra? – pergunta Nora.
– Perdeu num acidente numa máquina de ceifar quando ele era adolescente ainda. Ah, ele era surdo também!
– Por causa também do acidente?
– Não, ele nasceu assim. Seu irmão, Nathaniel – complementa

Gale certo tempo depois – era dono de uma grande fazenda de laticínios. E era considerado um homem muito rico! Bom, pelo menos para os padrões aqui de Chilmark. Pensando bem, ele era surdo também.

Numa posterior e chuvosa tarde, Gale recebe Nora em sua casa. Ela está intrigada com esta ilha, seus surdos, seus costumes e, por isso, lhe pergunta tudo o que pode de sua história. E Gale se recorda de muito, pois há muito vive por lá. O que mais Nora quer saber é o que as pessoas ouvintes da vila achavam das surdas:

– Ah, eles não achavam nada sobre elas! Elas eram como qualquer outra. – responde Gale, não sem estranhamento à pergunta.
– Mas como as pessoas se comunicavam com elas? Escrevendo tudo em papéis?
– Não – lhe diz o antigo ilhéu, como se fosse a coisa mais óbvia do mundo –, veja, todo mundo aqui falava língua de sinais.
– Você quer dizer que as famílias das pessoas surdas e outros também? – indaga Nora.
– Claro – afirma Gale enquanto perambula pela cozinha a fim de reabastecer seu copo com seu rum favorito –, e todo mundo na cidade também! Eu costumava falá-la, minha mãe, todo mundo. (LUZ, 2011: 116-117)

Caminhos orais,
São Paulo, 2008

Faz um bom tempo, Beatriz e Paulo aprenderam a falar com seus respectivos familiares. Ouvintes, bastou escutarem. Mais tarde, com sua primeira filha, Carolina, bastou falarem o que aprenderam. Mas com a segunda foi diferente. Cristina, que ainda na barriga de sua mãe com rubéola ficou sem escutar, pediu algo além do que sentiam poder dar. Nunca na família havia existido alguém surdo. Por isso, buscaram fora ajuda daqueles que, disseram-lhes, teriam as respostas para suas perguntas de pais que amam. Assim, os dois mudaram de casa, de cidade, de trabalho, de vida e foram parar na capital.

Beatriz, então, deixou de ser advogada. Virou mãe de surda e professora de português de Cristina, simplificando o que conhecia para que a filha se aproximasse da parte abstrata desta língua. Até da matemática, que odeia, teve que ser professora por ela. Já Paulo, empenhou-se mais ainda como profissional, pois precisava dar futuro como pai. No caminho que lhes falaram ser importante seguir, a oralidade – aquela que lhes tinha guiado até aquele momento de suas vidas – foi mantida como norte esperançoso também com sua filha.

Hoje, passados quarenta anos, suas crenças são e também não são mais as mesmas. Viram muitas coisas que lhes impressionaram, decepcionaram, deram esperança, enganaram, apavoraram. Mas a filha, falante do jeito que queriam, ainda não viram. Paulo, hoje, pondera sobre tal cultura, essa – a sua até agora – que se centra na boca e no som:

– O que eu acho ruim é que ela não tem chance neste mundo! Não tem! Não adianta falar que tem porque não tem. É tão simples! A surdez! [...] É tão simples e mesmo assim não consegue uma integração dela, do surdo, na sociedade. Você não vê! Você vê grupinhos de surdos em alguns lugares. [...]
Beatriz parece concordar:
– A vida do deficiente auditivo é diferente e vai ser diferente a vida inteira! Porque a nossa cultura é baseada na comunicação oral, né?! [...] É, a vida toda do surdo é pontuada de coisinhas assim, que ela perde o bonde porque não escutou. Isso tem demais, demais! Na hora que você... tá aqui no almoço – e isso já aconteceu – aí todo mundo levanta pra fazer uma determinada coisa porque alguém tá chamando: “Olha aqui na televisão isso aqui!” E ela: “O que foi, o que tá acontecendo?” Entendeu? É a vida toda assim! Porque se você não falar especificamente com ela, ela não sabe o que está acontecendo. Ela realmente não escuta nada! [...] Fala é um troço na vida da gente, né?! Limita muito não estar escutando o que o outro está falando e é uma deficiência que não aparece. Você externamente olha e você não vê.
Nestes caminhos marcados pela oralidade, a surdez não aparece. Tampouco desaparece. E Cristina, surda e existente, fica sem lugar. Para grande pesar, até hoje, de seus diligentes pais:
– Eu acho que estamos construindo uma imagem muito negativa, mas a gente não é muito otimista com estas coisas. Nós somos meio amargos com isso. São só quarenta anos, não deu pra digerir ainda... [...] Eu acho que nós somos um pouco amargos, mas não considero que a gente afundou. Acho que nós sobrevivemos. (LUZ, 2011: 171-172)

“Eu sei que tem gente que gosta de desfazer”,
São Paulo, 2009

Maria não é surda. No entanto, fala como quem sabe algo sobre o que um surdo passa na vida. Maria é mãe de uma jovem assim, Jaqueline, e como tal, diz saber de algumas coisas:

– Ela fala que não gosta de gente boa de ouvir porque ela não entende nada. A pessoa ouvinte fala com ela, mas que ela não escuta e não entende. Porque ela prefere lidar com gente igual a ela que só comunica com sinais. Aí é mais fácil pra ela. [...] Porque ela tem o celular dela aí e termina o crédito. Aí eu tenho que botar o crédito. Mesmo que a gente dê papel escrito falando que ela tem problema de audição, ela quer carregar o celular dela e mesmo assim ela entrega o papel, mas as mulheres não põem, não carregam o celular dela. Mas só que ela não sabe falar quanto é que ela quer que coloque, então ela volta pra casa sem carregar o celular, aí ela fica muito chateada com isso, né?! (olhando pra Jaqueline e falando em sinais). [...] O único problema dela é que tem muitas coisas que muita gente ainda não sabe ainda se comunicar com ela. Mercado eu marco pra ela no papel, mando ela ir e ela compra. Ela quer comprar alguma coisa, eu dou dinheiro e ela vai lá e compra. Mas eu tenho que dar dinheiro a mais pra não faltar, porque se tiver faltando aí dá problema no caixa. Então quando eu preciso de alguma coisa, eu dou dinheiro a mais pra não dar problema de ninguém dizer desaforo pra ela. Você sabe, Renato, tem muita gente que é muito ignorante ainda hoje em dia! No ônibus, quando eu levo ela – tem vez que eu levo todos os dias porque tem muita gente –, outro dia mesmo – ela tem a carteirinha dela especial –, na hora de passar na catraca, a primeira vez quando passou não rodou. Aí o que ele fez? Mandou ela ficar de lado e deixou todo mundo passando ela. Ele não tentou mais outra vez! Deixou ela ali parada e os outros passando e ela esperando ali, à vontade dele. Aí eu vi e bati no vidro e perguntei: “Por que você não passa o cartão dela?” Ele falou: “Ah, deixa eu ver!” Aí passou e o cartão dela passou. Custava ter passado duas vezes o cartão? Não custava, custava? Mas ele... então, é por isso que muitas vezes ela sai sozinha eu não gosto. Só por isso. Eu sei que tem gente que gosta de desfazer. [...] Pra mim... como é que diz? Eu aceitei, mas eu pedia muito a Deus. Eu sempre pedi, pedi. Eu queria tanto que ela fosse ouvinte, Renato! Porque não é tanto eu, mas dela. Porque... como é que diz? Tem muita gente que não respeita as pessoas assim que tem qualquer deficiência. Eles não aceitam [...].
Para Maria, bem mesmo, a filha sabe só um idioma. Aquele que todos os outros não. Se soubessem, faria diferença. E muita:
– Você já pensou? Aí a Jaqueline chega e vai buscar cinco pãezinhos e o padeiro sabia sinais e falava com a Jaqueline! Não seria mais fácil? Vai comprar um litro de leite e fala isso! Seria mais fácil. Que nem aquela história de carregar o celular dela. Você acha que se tivesse um com língua de sinais não seria mais fácil? Ela levava lá e falava: “Eu quero vinte reais!”. Se tivesse mais gente que soubesse língua de sinais seria muito bom! Tudo bem que agora até na televisão já tem, você não viu? [...] Tem canal que tem direto. Passa pra quem ouve e pra quem não ouve [...]. (LUZ, 2011: 184-185)

6. Aparição de surdos na contemporaneidade

Da trajetória do presente autor junto aos surdos (e que culminou na sua pesquisa de doutorado), das referências teóricas e metodológicas utilizadas/desenvolvidas ao longo da produção de sua tese no campo da psicologia social e das dezessete cenas surdas derivadas de todo este processo narrativo-analítico foi que alguns apontamentos foram tecidos a respeito dos que vivem a condição surda atualmente (LUZ, 2011, 2013):

 

  • dentre as principais questões testemunhadas encontramos:
    • prejudicado reconhecimento de rosto em um alguém surdo;
    • uma precariedade na existência social ofertada para surdos;
    • a naturalização entre surdez e psicopatologia;
    • a estigmatização profissionalizada do surdo;
    • uma sistemática tecnização da relação entre pais e seus filhos surdos;
    • a luta dos surdos pela percepção social deles enquanto seres significativamente visuais;
    • e uma busca humana dos surdos por pertencimento comunitário.
  • em suma, a pesquisa nos fez sentir que os surdos precisam de melhores condições de aparição na situação contemporânea essencialmente em quatro assuntos inter-relacionados:
    1. identificação exata de sua condição orgânica e que esta não os negue relacionalmente na demanda maior apresentada por seu rosto;
    2. garantia de experiências linguísticas cotidianas, acessíveis e plenas;
    3. acesso aos saberes portados e facilitados por Outros;
    4. amparo ético que sustente a construção de sua presença singular no mundo.

A pesquisa resumidamente apresentada aqui é somente uma das diversas possibilidades de tentar acessar aspectos que revelem a qualidade das condições éticas e situacionais para a aparição dos que vivem a surdez na atualidade. As pesquisas que podem ser realizadas são diversas porque são muitas ainda as condições a serem visibilizadas e debatidas na esfera pública.

De tudo aquilo que gostaríamos que nossa pesquisa ecoasse, um ponto central nos parece importante destacar aqui: “surdez não é sinônimo de silêncio. Nem receptivo, nem expressivo. O silêncio é a não-aparição metafísica entre Outros, algo de que o surdo, por motivos éticos e situacionais, recorrentemente está sob ameaça”. (LUZ, 2011: 235) Espera-se que ao narrarmos tais condições e publicizar algo sobre o drama humano das pessoas surdas na contemporaneidade estejamos colaborando ativamente na reversão gradativa e sistemática – em especial a que se constrói por meio de políticas públicas – das acima apontadas condições dificultadoras da aparição de surdos.

Notas

1 Tradução nossa.
2 Manteve-se em itálico as palavras usadas literalmente a partir da fonte de onde emergiu a cena em questão. Este destaque será mantido também em relação às falas originais dos pais entrevistados quando no caso das duas cenas surdas parentais aqui apresentadas.

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