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Ronaldo Manassés
Ronaldo Manassés
Professor/Investigador
Festa de Mãe Ita, um tambor de mina no natal de Santa Bárbara do Pará - Universidade Federal do Ceará.
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Publicado em 2019
VI Seminário Internacional Violência e Conflitos Sociais: Facções, Crimes e Segurança Pública
Ronaldo Manassés
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Resumo

Desde que Pierre Verger aportou em Salvador e registrou por imagens a mitologia africana por meio do candomblé, esta possibilidade religiosa tem chamado atenção de pesquisadores do Brasil e do mundo. Este artigo então tem como objetivo refletir sobre o festejo de dona Ita, encantada cultuada num terreiro de Candomblé e Tambor de Mina, em Santa Bárbara do Pará. De acordo com Ferreti (2000) encantados são seres espirituais, invisíveis à maioria das pessoas ou algumas vezes visíveis a certo numero delas”.O estudo alça mão como metodologia da construção de trajetórias de Kofes (2011). Como instrumentos de pesquisa usei o diário de campo, e entrevistas. Para tanto bebi na literatura de teóricos como: Prandi, 1991; Durkheim,1996; Kofes, 2011; Ferreti, 1997. O festejo ocorre no dia 25 de dezembro, e em meio a uma das maiores festas católicas do mundo, o natal. Conclui-se que nos moldes do conceito sociológico de habitus, a comunidade de terreiro nominada Ederé Aho Salá de Doté Omineram, é uma Ahama do Karelewi em Salvador, de Pai Carlinhos de Oxum. Da Nação Jeje Savalú no Candomblé e Tambor de Mina. E se constitui como familia e faz do período de fim do ano um grande exemplo do sincretismo e religioso brasileiro, iniciado no século XIX, por sua acestralidade, quando a afroreligião era totalmente proibida de existir e de se cultuar. E ainda em certa medida, demonstra ser um exemplo de hibridismo religioso.“é um merecimento muito grande descer numa data em que se comemora no mundo inteiro, quem acredita, acredita que um dia Jesus veio e um dia vai voltar, mas enquanto isso nós vamos aqui fazendo a nossa parte”. (Mãe Ita na cabeça do pai de santo).

Introdução

Há no Brasil uma laicidade religiosa que sobrevive há muitos anos. Mesmo com o advento de novas discussões, novos paradigmas, inclusive religiosos. Afinal como bem já disse Prandi, (1991) a religião está intimamente ligada a sociedade, é parte dela, por isso se esta evolui, a ou as religiões tendem a evoluirem por conseguinte.

De acordo com Durkheim (1996), crentes ou incrédulos, em algum momento da vida são levados a criar juízo de valor sobre o que lhes rodeia, seja juízo de valor a partir da ciência, ou, muitas vezes, advindo dos processos religiosos em que estejam imbuídos, gerando, algumas vezes, atitudes de intolerância.

Seguindo esta discussão, o processo religioso no Estado do Pará, mais precisamente na cidade de Santa Bárbara do Pará, não poderia ser diferente. Por ser uma cidade pequena, ainda com os processos de aglutinação e cosmopolitização em franco desenvolvimento. Detém características peculiares, de uma cidade na Amazônia braisileira, e portanto, permite a presença marcante da religiosidade afrobrasileira, 2 candomblé, umbanda e tambor de Mina. Falo desta possibilidade, porque ainda vivemos no Brasil um processo forte e crescente, de intolerância religiosa contra as religiões de matriz africana, sobretudo, em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo.

Casos de extrema violência têm sido noticiados nas redes sociais e mídias, como destruição de casas de Axé, agressão a sacerdotes e adeptos do candomblé e umbanda, fora uma constante em 2016 e 2017, os casos se agravaram. Chegando ao extremismo de se ter assassinatos destes sacerdotes e sacerdotizas, tão somente por serem adeptos do camdomblé ou umbanda. Mas antes de fazer qualquer reflexão acerca dos processos religiosos no Brasil, e especificamente no Pará, é preciso uma reflexão inicial sobre o que sejam essas expressividades religiosas.

Em Campos 2017:

E de acordo com Prandi (1991) o candomblé é uma criação genuinamente brasileira, a partir de uma herança Iorubá, que definirei mais a frente o que significa, que é liderada por um homem ou mulher e que tem autoridade máxima, sobre todos que pertencem ao grupo. Este ou esta líder rende culto a um Orixá, que será o Orixá fundador daquela comunidade religiosa, ao qual todos, indistintamente, da casa deverão também reverenciar. Para este Orixá é que será levantado um templo principal, a casa de Axé ou terreiro e, para os demais Orixás cultuados na casa, serão construídos templos secundários, chamados quartos ou casas de santo. A hierarquia da casa é a mesma dos Iorubás, ou seja, os mais jovens reverenciam os mais velhos, aos quais deverão prostrar-se diante dos seus pés, como faziam os filhos iourubanos.

A afroreligião então surge no Brasil, a partir do processo de escravidão porque passaram as pessoas negras que para aqui eram trazidas. Nosso país foi um dos últimos países, infelizmente, a abolir a escravidão, a terminar com mais de três (3) séculos de carnificina, e venda de seres humanos negros trazidos do continente Africano. E junto com eles vieram suas crenças, sua cultura, e seu sagrado, não aparente, pois não lhes era dado nenhum direito, inclusive o de adorar seus deuses, mas trouxeram em suas almas, escondidos dentro de si.

E assim surgiu o candomblé, religião constituída genuinamente em solo brasileiro, classificada como religião totêmica, derivada do animismo africano, e que desde o seu nascedouro sofre com o preconceito, de cor, pois veio de negros, e até hoje se diz que "coisa de preto" não tem valor, religioso, e sobretudo, pela falta de esclarecimento e total ignorância da sociedade, pois esta religião que surge nos idos do século XIX, época em que a Europa ganhava terreno, com sua "palavra de salvação", e todas as outras religiões que se constituíram desde a mais tenra idade, inclusive muito mais antigas que o próprio cristianismo, e que não se enquadravam nos moldes judaico-cristão, eram tidas como impróprias, e deveriam ser banidas da sociedade. E a "igreja" seguiu sua lascividade classificando-as e adjetivando-as das piores formas possíveis, para que o povo acreditasse piamente, que a única e "verdadeira" era a religião cristã.

Os mecanismos de opressão religiosa usados pela igreja, iam desde um sermão nas missas, até o assassinato de negras, principalmente, na fogueira ou enforcamento, acusadas de bruxaria. Quando na verdade eram mulheres negras que detinham o conhecimento de seus antepassados no uso de unguentos, banhos de ervas e rezas para espantar o mal. E que em muitas vezes suas senhoras brancas, europeias, recorriam a estes conhecimentos quando seus filhos eram acometidos de doenças. Era comum as negras serem retiradas das senzalas para cuidar de crianças brancas, com banhos de ervas e seus unguentos, mas eram expressamente proibidas de mencionar qualquer coisa em relação aos cuidados, sob pena de serem severamente castigadas.

Neste contexto, também se tem outra expressividade religiosa de matriz africana, o Tambor de Mina. Assim chamado por ter suas raízes plantadas no 3Estado do Maranhão, tendo vários nomes de grandes sacerdotes, pais e mães de santo, que ficaram famosos, tocando o tambor e cultuando os encantados, caboclos, que são assim nominados as divindades cultuadas nesta religiosidade de matriz africana. E que são muito conhecidas no Maranhão. Algumas destas divindades, segundo Ferreti, 2014 fazem parte do folclore brasileiro, e maranhense, e por isso conhecidas pela população.

como a Mãe d´Água e o Rei Sebastião, são muito conhecidos. Outros, como o Ferrabrás de Alexandria, personagem da antiga obra Historia do Imperador Carlos Magno e os doze pares de França, reproduzida em folhetos de Cordel (BARROS, L. s.d.), nas Cheganças e em outras danças e representações folclóricas que narram batalhas entre mouros e cristãos, nem sempre são conhecidos como encantados fora dos terreiros de mina e de outras denominações religiosas influenciadas por ela FERRETI, 2014.

E assim como no Maranhão o Tambor de Mina no Pará, diferente de sua chegada, tímida e as escondidas, pois seus adeptos tanto quanto no candomblé, não podiam divulgar suas crenças, hoje é muito difundido, com seus festejos divulgados em redes sociais chamando, e convidando a comunidade para participar. O festejo de Mãe Ita, o qual me dedico a descrever e refletir neste texto ocorre em Santa Bárbara do Pará, como dito anteriormente. E antes de começar a descrição e análise do evento é importante mencionar que usarei termos na língua eu-fon, língua da 4 Nação Jeje Savalú, da qual pertence o terreiro pesquisado, e, sobretudo, foi uma exigência do sacerdote, o pai de santo da casa, para que o texto guardasse os termos, como ele mesmo disse, “corretos” da língua. O que para mim demonstra nitidamente uma preocupação identitária e de demarcação social, uma vez que as afroreligiões como um todo historicamente sofrem processos de intolerância e preconceito, e não à toa são tidas como religiões de resistência.

As raizes históricas do Hungpame Vódùn Togun e seus líderes religiosos

Antes de passar a descrição do festejo de Mãe Ita e sua intrigante ocorrência no dia 25 de dezembro. É preciso dizer quem é o líder religioso da casa e um pouco de sua história no Candomblé e Tambor de Mina. Doté Omineram, como é chamado na religião, cargo dado aos sacerdotes filhos do Vódùn Ederê, que na nação Ketu é conhecido como Logun Edé, por isso muito mais conhecido por este nome, pois na história do candomblé esta nação é a mais difundida e, por conseguinte, mais conhecida.

O “Pai Omineram”, como todos o conhecem, tem sua vida dedicada a afroreligião desde a juventude. Abriu casa, ou seja, comanda terreiro desde os dezoito (18) anos de idade, quando veio de Cururupú, município do Estado do Maranhão, onde tem suas raízes consanguíneas e religiosas, para o Pará. E desde então vive na região metropolitana de Belém, onde fundou terreiro, primeiro no bairro da Cidade Nova, e viveu por muito tempo, construiu seu nome a partir da sua relação com a encantada que é, como chamam no espaço do terreiro, sua chefe de cabeça, Dona Ita. “Meu filho, eu sou quem sou hoje, eu tenho nome nesta religião por causa dessa cabocla, mãe Ita é tudo pra mim” (fala do Pai Omineram), ao se referir a mãe Ita. Depois de alguns anos conheceu a Mãe de Santo Antônia Santos Ledo, que era conhecida na cidade de Santa Bárbara como “Antônia de Onirê”, fundadora do terreiro no qual hoje a festa da encantada acontece, desde 2011. O terreiro já tem 46 anos de existência, na pequena cidade de Santa Bárbara do Pará. E que após a morte da matriarca da casa passou a ser comandado pelo Pai Omineram e sua filha de santo, também Mãe de santo, Doné Raimunda Reisvalois, carinhosamente conhecida por todos na casa como “mãezinha”. Pai Omineram tem 46 anos de vida dedicada ao candomblé e Tambor de Mina, e no auge dos seus quase 60 anos de idade diz que se sente pequeno, frente a grandiosidade dos Vódún e encantados. “Eu nasci para esta religião meu filho” (fala do pai Omineram) ao mencionar sua relação com a religião.

O natal em Santa Bárbara do Pará e a cosmovisão no espaço do terreiro

Em se tratando do espaço do terreiro, lugar de acolhimento e de grande circulação de pessoas e energias. Até de subversão do sentido que se tem sobre religião, afeto, e regramento social, e ainda, hierarquia. Falar de uma festividade é um privilégio, pois cheguei a este espaço como pesquisador, e desde a primeira vez fui muito bem recebido. E ainda tive a grata satisfação de conhecer inúmeras autoridades da família, incluindo o patriarca, Pai Carlinhos de Oxum de Salvador –BA, que estava no terreiro no período que estive visitando.

Meu relato faz referência ao festejo do ano de 2016, quando Mãe Ita completara 47 anos de incorporação no pai de santo. E era uma constante na fala de muitos adeptos, filhos da casa, o orgulho em fazer parte daquela festividade. Em conversa com um Ogan mais velho da casa, este me disse que a organização da festa se dá três (3) meses antes, em média, quando a encantada, Mãe Ita incorpora no pai de santo, pai Omineram, e em reunião com os filhos da casa decide, as cores que serão predominantes na festa, tanto na decoração, quanto nas roupas dos filhos e filhas, os rodantes (aqueles que incorporam) e os não rodantes (ogans e ekedjs). A reunião é feita geralmente com os filhos mais velhos, aqueles que já têm cargo na casa, ou suas próprias casas, que na Nação Jeje Savalú, da qual a casa tem sua pertença, chamam Ahama.

Assim sendo, as Ahamas reúnem-se para começar a organização da festa que será em dezembro, mais precisamente no dia 25, no natal. A partir deste encontro, meados de outubro, as casas também se organizam para dividir as responsabilidades durante o festejo, pois há muito o que fazer, não só a decoração, bem como o tipo e a quantidade de comida e bebida que será servida, pois em média, a festa reúne quase quinhentas (500) pessoas, entre filhos da casa e visitantes. Não há nenhum tipo de pagamento, ou cotização, para as despesas da festa, os filhos, bem como muitos simpatizantes, até clientes da própria encantada fazem doações em valores ou em alimentos e bebidas para ao festejo. Em relação aos clientes é outra face interessante do festejo, pois muitas pessoas têm histórias de gratidão com a encantada, das quais algumas deram depoimento relatando sua gratidão com a mesma.

Esta data é muito importante. Eu fico muito emocionada quando eu falo, mas nós estamos aqui comemorando o aniversário da Mãe Ita, parabéns Mãe Ita. E o significado é enorme porque são muitas graças alcançadas, e as que eu recebi então... porque Mãe Ita, nossa mãe, está presente em todos os momentos das nossas vidas (fala de uma cliente)

A fala é de uma das senhoras que acompanha o festejo e diz que é cuidada pela encantada há pelo menos 12 anos. Ela não mora na cidade de Belém, mora em João Pessoa-PB, mas quando residia em Macapá passou por um processo de cura de um câncer, e atribui a cura também a encantada, mesmo fazendo o tratamento convencional, na medicina, afirma que foi “cuidada e curada” por Mãe Ita. O que a torna uma das simpatizantes e clientes assíduas do festejo. Junto com ela os filhos e filhas reúnem-se, muitos começam a chegar três, quatro dias antes. Outros até quinze dias antes, pois dependendo de onde more, a viagem é demorada, levando-se em consideração a realidade local, amazônida, e que é regida pela maré dos rios, alguns filhos por viajar de barco precisam chegar bem antes do dia do festejo. E também por ser uma data de grande circulação de pessoas, pois é no período natalino, como se diz “ alta estação”, logo as passagens sobem de preço, e a procura por passageiros também, o que torna as viagens mais complexas.

Como o festejo acontece num dia tão comemorado pelos cristãos católicos, pentecostais e neopentecostais -- o natal, como já disse anteriormente, penso ser interessante refletir sobre o que seja o sincretismo religioso neste lugar, uma vez que na fala das pessoas da casa e até mesmo da própria encantada, nota-se a referência ao cristianismo. “é um merecimento muito grande descer numa data em que se comemora no mundo inteiro, quem acredita, acredita que um dia Jesus veio e um dia vai voltar, mas enquanto isso nós vamos aqui fazendo a nossa parte”.(Mãe Ita incorporada no pai de santo). E historicamente, não só o tambor de Mina, como as outras religiões de matriz africana, surgiram sincréticas. Para muitos pesquisadores como uma forma de resistência, pois não era permitido aos negros escravizados professar sua fé, ou posteriormente como uma mistura cultural do Brasil, híbrida, nos termos de Engler, 2009.

Ferreti, 2014 diz que:

Constatamos que o tambor de mina e, sobretudo, os grupos mais tradicionais estão intimamente relacionados com as práticas do catolicismo. Mesmo casas mais recentes seguem muitas destas práticas. Os poucos terreiros de candomblé de rito nagô, implantados no Maranhão a partir da década de 1980, seguindo práticas do candomblé da Bahia e prestigiados pelos movimentos negros, negam o sincretismo, afastam-se do catolicismo e estão envolvidos com o processo de reafricanização (p,18. 2014)

Como se vê a presença do sincretismo coexistindo com a afroreligião e, mesmo em terreiros mais recentes, é uma constante. Entretanto, ao que se percebe não é visto pelos adeptos da casa como uma forma de opressão, ou ainda impedimento, ou subjugação do Tambor de Mina, em relação ao Cristianismo. Não percebi essa consciência em nenhuma das falas dos filhos da casa que colaboraram na pesquisa. Na verdade, o que ficou perceptível foi a valorização da festa da encantada. A própria ceia de natal, tão importante em outros lugares, em Santa Bárbara, no terreiro de Pai Omineram, tem papel coadjuvante. Em várias casas, dos filhos, e de autoridades do terreiro, a ceia do dia 24 de dezembro é uma cerimônia bem simples, mas não deixa de existir, de ser comemorada, deixando claro a presença do cristianismo, mesmo que para muitos adeptos da casa nem percebam esta como imposição, dado o processo de naturalização que o natal passou.

Sendo assim o sincretismo abordado por tantos teóricos como Ferreti, 2014, está presente também no terreiro em Santa Bárbara do Pará, entretanto penso que a questão aqui se coaduna muito mais com o conceito de hibridização, nos termos de Engler, 2009. Pois para este é uma mistura mais ampla de outros elementos culturais, incluindo as relações entre elementos religiosos e políticos. E sigo este conceito por ver um terreiro em 2016 usando elementos do cristianismo de forma natural e não mais por imposição ou sobrevivência como fora anos atrás por seus ancestrais escravizados.

Seguindo a narrativa do dia vinte quatro (24), véspera do festejo, os filhos estavam sempre preocupados com o dia seguinte, por isso dormiam cedo, não ingeriam bebida alcoólica e era recomendado a estes que assim o fizessem e, sobretudo, que se abstivessem de relações sexuais. Como forma de preservar seu corpo, e como se diz no espaço do terreiro “para não sujar o corpo”. Uma alusão ao fato de que ao manter relações sexuais, as pessoas trocam fluidos, energias, e nem sempre a pessoa está com suas energias equilibradas. Esta foi a explicação do pai de santo ao ser questionado sobre a necessidade de abstinência sexual. E o processo de incorporação que todos os filhos e filhas passariam no dia seguinte requer destes, não só o equilíbrio das energias corporais, mas também, da completa limpeza de seu corpo. Por isso, as atividades no dia da festa se iniciam pelo banho de cabeça, logo nas primeiras horas da manhã. As autoridades da casa, (Ogans), misturam ervas, dadas pelo pai de santo para a ocasião. O preparo é muito meticuloso, com rezas próprias para o ritual, uma ritualística comum nas casas de Tambor de Mina e que faz parte do processo de evocação ao sagrado.

Os filhos vão chegando pela manhã, em verdadeiras caravanas. Com suas malas, em que traziam suas vestes, tanto as mais simples, chamadas roupas de ração. Para os homens calça e camisa brancas e para as mulheres saia, calça e camisas, também brancas. Como também as roupas para a festa principal, à noite. Neste ano as cores da festa eram verde, vermelho e branco, por isso, pela manhã todos os filhos vestiram a roupa de ração, branca, para tomarem o banho de cabeça, sendo a primeira ritualística da festa, uma forma de preparar os adeptos para o festejo a noite, quando incorporariam os encantados e encantadas, de acordo com sua filiação. Como o registro da imagem abaixo, na qual o pai de santo dá orientações aos filhos e filhas momentos antes do início do ritual pela manhã. Na casa são muitos encantados que dançam, ou seja, baiam. Da família de Bandeira, Família de Gama, dos Lençóis, da família de Turquia, da qual a homenageada Mãe Ita faz parte, e da família de Codó, nobres como seu 5 Corre-Beirada. E que dançam do início do tambor, por volta de 20:00h até a madrugada, isto do primeiro dia, pois a festa tem duas noites de tambor. Fazendo jus aos festejos de 6 Tambor de Mina conhecidos no Estado do Pará e Maranhão, por durarem noites e noites.

Figura 1
Imagem: arquivo do pesquisador.

A partir das famílias obtive a informação de quais encantados participam do festejo. A nominação de cada um está pela hierarquia dos filhos e filhas. Esta hierarquização é feita a partir do tempo de feitura, ou seja, de iniciação na religião. Assim sendo, são os seguintes encantados: Mãe Ita, Caboclo Mariano, João de Una, Balanço do Mar Sereno, Balancinho, Rei Surrupira, Caboclo 7 flechas (Índio Africano), Légua Boji, Dona Jarina, Dona Joana Gunça, Dona Maria José, Dona Herondina, Dona Teresa Légua, Dona Mariana, Baiano Grande, Seu Mata Virgem, Caboclo Luizinho de Légua, Cabocla Jurema, Dona Maria Légua, Índia Guará, Dona Idagunça, Dona Juliana, Caboclo Manezinho, Corre Beirada, Caboclo Lourenço, Caboclo Zé Raimundo, Caboclo Zé de Légua, Caboclo Tupinaum, João da Mata, Cabocla Jupiara, Caboclo Tombassé, Caboclo Menino Louro, Cabocla Rosa Boji, Dona Mineira e Caboclo Mineiro, Caboclo José Tupinambá.

Como se vê, são muitos encantados e encantadas. E que daria uma grande pesquisa antropológica, suas histórias. Por isso, vou me ater, suscintamente, a da homenageada da festa, Cabocla Ita. Esta, de acordo com Pai Omineram, é tida como uma encantada da Família de Turquia, mas ele afirma que não é verdade. Ela é da família de Surrupira e foi criada pelo Caboclo Tapindaré seu irmão mais velho.

Figura 2 - Mãe Ita
Imagem: arquivo do pesquisador.

Seguindo a narrativa do evento. A noite do primeiro dia é o festejo principal. O barracão (terreiro) é todo ornamentado pelos próprios filhos, de acordo com a escolha da encantada, meses antes. Tudo preparado minuciosamente, cada detalhe como a disposição dos tambores, as cadeiras em volta, nas laterais do terreiro, têm uma explicação. Uma delas a questão hierárquica dentro do Tambor de Mina. O festejo começa com uma queima de fogos, um grande círculo é feito, a chamada de roda de tambor, iniciado pelo pai de santo, e após ele, os filhos de acordo com sua pertença ao grupo, ou seja, de acordo com seu tempo de iniciação na religião. As doutrinas, que são cantadas ditam, não só o ritmo e o desdobramento do tambor, mas também dizem a história da religião e dos encantados que logo estarão em guma, ou seja, em terra, incorporados em seus filhos. Esta também é uma face muito interessante do Tambor de Mina: as doutrinas, cantigas que são entoadas ao ritmo dos tambores. E que certamente dariam outras pesquisas, pois cantam em versos, inúmeras historias, as ligações, as pertenças de cada encantado e encantada.

Figura 3
Imagem: arquivo do pesquisador.

A festa tem seu ápice quando Mãe Ita incopora no pai de santo, a roda é desfeita e formam então duas fileiras deixando o espaço aberto para que ela dance. No primeiro momento ela roda o corpo do pai de santo por inúmeras vezes, na frente do tambor, para, e com uma das mãos acena para cima e diz: “Salve Deus, Salve esta casa Santa, Salve o dia de hoje e Louvado seja nosso Senhor Jesus Cristo”, os filhos assim respondem em coro: “para sempre seja louvado”. O que mais uma vez me evoca pensar no sentido da hibridização religiosa, entre o Tambor de Mina e a fé Catolica.

Neste contexto Ferreti, 1999 diz:

A religião afro-brasileira no Maranhão, em suas diversas denominações é bastante ligada ao catolicismo. Alem dos terreiros realizarem festas e rituais do catolicismo popular, como a Festa do Espírito Santo, Queimação de Palhinhas do Presépio, Batismo (na igreja ou no terreiro, com água benta), alguns ritos católicos são indispensáveis nas festas de voduns e encantados, como: missa, procissão e ladainha (em latim).

Sob muitos aplausos e emoção ela é recebida, ela então agradece a presença de todos os presentes, inclusive dos filhos e amigos que viajaram de longe para estar com ela e diz: “vou chamar o encantado do povo e dar um cheiro em cada um que tá aqui hoje”. O tambor então tem sequência até que todos tenham incorporado. A seguir, os agora encantados e encantadas vão saindo um a um, para se vestir com suas roupas características, e que ao questinar o porque o fazem, fui informado que nas roupas o encantado também deixa claro sua ligação familiar, sua pertença, e sua história. Então cada um vai até a frente canta duas ou três doutrinas, que também mostram sua marca identitária. O tambor segue seu curso até que uma mesa, previamente organizada na parte dos fundos do terreiro, todos são convidados a se posicionarem no seu entorno para cantarem os parabéns a aniversariante da noite. Primeiro cantam os parabéns conhecido por todos fora da religião, e a seguir cantam em língua eu-fon, “ ojo ibi ayó fun ô, ojo ibi ayó fun ô, ojo ibi ayó fun ô, ojo ibi ayó Mãe Ita, ojo ibi ayó fun ô”. Em seguida voltam ao salão para encerrar o tambor. Cantam uma doutrina segurando um pano branco, ao final da doutrina colocam sobre os tambores encerrando o festejo, reiniciando no dia seguinte, para a segunda noite de festa.

Considerações Finais

O festejo de Mãe Ita, em Santa Bárbara do Pará demonstrou não só a questão inicialmente abordada, o sincretismo, mas também o hibridismo, uma vez que alça mão de características e artefatos da cultura católica. Como bem disse anteriormente, assim como em outras religiões afrobrasileiras, o Tambor
de Mina surgiu sincrético, entretanto, não deixa de ser uma grande expressividade da cultura brasileira e, sobretudo, a resistência do povo negro e afrobrasileiro frente as adversidades históricas que os acompanham.

A encantada festejada em Santa Bárbara há quase uma década, desempenha, a meu ver, o papel da mãe zelosa, amorosa e cuidadora, consegue reunir inúmeras pessoas, sejam filhos e filhas da casa, sejam simpatizantes ou clientes. E em pleno dia vinte e cinco (25) de dezembro, uma das maiores festas cristãs do mundo, arrebata famílias inteiras para junto de si entoar suas doutrinas e louvar seu sagrado, num movimento hibrido e de grande expressividade cultural, o que torna do terreiro de Vódún Togun, uma grande referência de resistência religiosa e cultural do lugar, na medida em que tem mais de quarenta (40) anos na cidade.

Neste sentido decidi terminar este texto com uma das doutrinas cantadas por toda a comunidade religiosa, com muito entusiasmo e emoção, no momento de término do festejo, entoada pela própria encantada em companhia dos filhos e filhas da casa e que demonstram as perteças religiosas, hierarquizações e hibridizações desta religiosidade, e que segundo os filhos é uma das doutrinas que representa e conta a história do pai de santo e de sua encantada, bem como de seu fazer como sacerdote da casa.

“Já nasceu dentro da Mina, no Nagô, no Candomblé. Tem a vida ilimunada por Oxum e LogunEdé. Eu vou prá lá vou, eu vou prá lá já, hoje tem mina lá na casa de Babá. Eu vou prá lá vou, eu vou prá lá já, hoje tem mina lá na casa de Babá. São 47 anos de Mãe Ita em sua croa, Manezinho folha seca, também passa numa boa. Abram alas pra alegria, Faisãozinho vem ai. Tem encanto na Turquia, lá em Itacurumim. Abram alas minha gente, força na palma da mão”.

Notas

2 De acordo com Prandi (1991) por volta do século XIX é que os negros puderam agregar-se e ter mais interação entre si. Vindos de várias regiões do continente africano, tais como Nagôs ou Iorubás, das cidades de Oió, Lagos, Queto, Ijexá e Egbá, além dos povos Fons, aqui chamados Jejes, principalmente os Mahis e Daomeanos, recriaram não só a religiosidade desses lugares, mas também traços culturais africanos, sendo considerada hoje talvez a mais bem acabada reconstituição cultural da África, preservada até os dias de hoje, o candomblé.
3 O Tambor de Mina surgiu na capital do Maranhão, se expandiu pelo Pará, Amazonas, outros Estados do Norte e para as capitais que receberam grande número de migrantes do Norte, como Rio de Janeiro e São Paulo. Embora hegemônico no Maranhão, o Tambor de Mina - Jeje, Nagô, Cambinda, foi sincretizado no passado com manifestação religiosa de origem indígena denominada Cura/Pajelança e com uma tradição religiosa afro-brasileira, surgida em Codó (MA), denominada Mata ou Terecô FERRETI, 1999.
4 Nação constitui um segmento ou matriz religiosa do Candomblé com traços litúrgicos comuns. Os grupos religiosos da Nação Jeje, se autodeclaram como Savalu, Mahi, Modubi, Agabi, Mina e Dahomé, de acordo com as práticas rituais, língua e costumes comuns. Os terreiros da Nação Jeje Savalu são decendentes do Cacunda de Yayá, a casa matriz NETO, 2017.
A ideia de nação nos remete a pensar em “transferências” ou “sobrevivências” de África, incrustadas em solo brasileiro no contexto colonial, que teriam se mantido sob peso de tradição. Assim, poderíamos mapear “origens” e correlacioná-las a determinadas regiões do continente africano e à noção de “pureza” ritual. As nações de Candomblé Jeje e Nagô (Ketu), achariam correspondências na África Ocidental, enquanto que a nação Congo-angola, a região central e sul da África. O vocábulo Jeje se refere aos grupos étnicos do antigo Daomé (atual Benin), especialmente os Fon e os Ewe, da área gbe falante. Entretanto, a acepção de nação dos antigos africanos na Bahia foi aos poucos perdendo sua conotação político-geográfica para se transformar num conceito quase exclusivamente teológico NETO, 2017.
5 Muitos caboclos da Mina descendem, por linha paterna, de fidalgos cristãos europeus (às vezes também ligados à Mina como encantados) como o já citado Dom Luís, rei de França (pai de Corre-Beirada), outros são descendentes de reis pagãos africanos, turcos, "ameríndios" etc., como o rei Surrupira (pai de Surrupirinha), o rei da Turquia (pai de Tabajara) e Sapequara, rei dos caboclos FERRETI, 2000.
6 Na Mina tanto os caboclos como os fidalgos e os orixás têm manifestação muito semelhante aos voduns da casa das Minas. Dançam no salão por muitas horas sem se destacarem individualmente, cantam, conversam com outros encantados e com os devotos, apresentam um comportamento semelhante ao dos devotos e às vezes chegam no início do toque e permanecem na guma (barracáo) até o seu encerramento. Como os voduns, alguns fidalgos e caboclos são sérios e outros são brincalhões, uns inspiram temor e outros despertam grande amizade, uns são velhos e outros são jovens. Alguns caboclos gostam de fumar mas, ao contrário dos voduns, em geral, não gostam de cachimbo, preferindo cigarros e charutos. Outros, diferenciando-se daquelas entidades africanas, fazem uso de bebida alcoólica, que nas casas mais tradicionais é oferecida a eles fora do barracão e, geralmente, após o encerramento do toque FERRETI, 2000.

Bibliografia

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DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália. Martins Fontes. São Paulo, 1996.

ENGLER, Steven. Umbanda and hibridity. Numen.,v. 56, p. 545-577, 2009. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/27793819?seq=1. Acesso em 27.12.2019

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