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Edward Burnett Tylor e a linguagem gestual
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Publicado em 2009
Ponto Urbe - Revista do núcleo de antropologia urbana da USP, 4
César Augusto de Assis Silva
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Resumo

É muito provável que o leitor se interrogue acerca do interesse em se traduzir um capítulo de livro de um antropólogo evolucionista do século XIX, que sequer é o mais citado, e, além disso, sobre um tema pouco estudado nas ciências sociais: a comunicação gestual dos surdos. Não foram poucas, contudo, as razões que motivaram a tradução de “A linguagem gestual”, capítulo do livro Researches into the Early History of Mankind and the Development of Civilization, de Edward Burnett Tylor, antropólogo britânico considerado um dos fundadores da Antropologia.

O fato de Tylor ser um autor pouco traduzido para o português faz, certamente, com que esta tradução venha preencher uma lacuna existente no ensino de antropologia nas disciplinas de Graduação. Além disso, se considerarmos o fato de Tylor ser tido, geralmente, como um antropólogo "de gabinete" (isto é, que teoriza sobre dados obtidos pelo trabalho de campo de terceiros e não pela observação direta), o texto escolhido revela um aspecto pouco conhecido de seu trabalho, mostrando-nos que ele, efetivamente, realizou pesquisas próprias para escrever sobre o que denominou a linguagem gestual dos surdos-mudos. Uma última razão para a tradução deste texto diz respeito ao fato de ele expressar outro pioneirismo de Tylor: o de ter feito da linguagem gestual um objeto de reflexão científica.

3Quem nos chamou atenção para este trabalho de Tylor foi o neurologista Oliver Sacks, em seu trabalho Vendo Vozes ([1989] 1998, p. 87), no qual menciona o conhecimento empírico que o antropólogo britânico possuía da comunicação gestual dos surdos. Segundo Sacks, Tylor nela teria sido fluente e conhecia a fundo algumas de suas propriedades gramaticais, antes que ela passasse por uma crescente desvalorização oficial, que se acentuou após o fatídico Congresso de Milão, em 1880, quando as línguas de sinais da época foram formalmente banidas das escolas especiais relativas à surdez.

4Antes de entrarmos em considerações mais específicas sobre o texto traduzido, cabe-nos apresentar algumas observações sobre o autor e sobre as principais correntes teóricas que conformaram seu pensamento. De acordo com Marett (1936) e Castro (2005), Tylor nasceu em 2 de outubro de 1832, em Camberwell, Londres, em uma próspera família Quaker, proprietária de uma metalúrgica. Em 1855, devido a uma tuberculose, abandonou os negócios da família. Em busca de clima mais ameno, viajou para os Estados Unidos e para a América Central. Em 1856, em Havana, conheceu Henry Christy e passou com ele quatro meses no México. Influenciado por esse amigo etnólogo, arqueólogo e que também era Quaker, passou a estudar antropologia e história. Dessa experiência americana surgiu seu primeiro livro, publicado em 1861: Anahuac: or Mexico and Mexicans, Ancient and Modern. Este foi o primeiro de uma série que contribuiu para a constituição da antropologia como disciplina científica. Embora Tylor não tenha se graduado, teve papel decisivo na consolidação da antropologia na universidade. Ministrou disciplinas de leituras em antropologia entre 1884 e 1895 na Universidade de Oxford e, em 1896, assumiu a primeira cátedra de antropologia nessa mesma Universidade. Faleceu em 2 de janeiro de 1917.

5Distintas correntes do pensamento europeu do século XIX confluíram para formar um pensador original como Tylor. Destaco, sobretudo, quatro influências que parecem ser decisivas para a compreensão do contexto intelectual de produção do texto traduzido: o evolucionismo darwinista, o iluminismo francês, a filologia comparada e o romantismo alemão. De maneira similar a praticamente todos os pensadores da segunda metade do século XIX, a teoria de Tylor é explicitamente conformada por um ponto de vista evolutivo. Suas duas mais importantes obras, Researches into the Early History of Mankind and the Development of Civilization(1865) e Primitive Culture (1871), foram produzidas entre a publicação dos livros mais influentes de Charles Darwin (1809-1882): a Origem das espécies (1859) e a Descendência do Homem (1871). De modo que o contexto intelectual de produção daquelas obras, a década de 1860, exigiu de Tylor um posicionamento frente às questões da evolução e do desenvolvimento da humanidade (Stocking, 1963). Tylor assumiu a posição monogenista – crença em uma origem única da humanidade - em oposição aos plurigenismo; além disso, foi crítico dos degradacionistas (ou degeneracionistas), que se inspiravam em uma concepção bíblica na qual o homem foi criado perfeito, sendo a história da humanidade sua degradação. Para Tylor, ao contrário, a história da humanidade é seu desenvolvimento e progresso (Tylor era um progressista (desenvolvimentista) convicto). A crença no progresso e na universalidade do homem e, como corolário disso, a unidade psíquica da humanidade – já anunciavam a herança da filosofia iluminista em seu pensamento, sendo possível, para Tylor, reduzir todas as diferenças contidas na história e na geografia a uma única escala evolutiva É importante salientar que, além de Tylor ser visto consensualmente como o fundador da antropologia britânica, é a ele também atribuída a primeira definição formal de cultura (cf., entre outros, Castro, 2005, p.17; Kuper, 2002, p.83; Cuche, 2002, p.35) em seu livroPrimitive Culture:

“Cultura ou civilização, tomada em seu mais amplo sentido etnográfico, é aquele todo complexo que inclui conhecimento, arte, moral, lei, costume e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem na condição de membro da sociedade” ([1871] 2005, p. 69).

Longe de querer retomar a história dos significados que a categoria cultura assumiu ao longo dos últimos séculos (ver, sobre isso, os exemplares trabalhos deWilliams, 1958; Elias, 1994; Kuper, 2002 e Cuche, 2002) nesta apresentação, é necessário explicitar que a concepção de cultura de Tylor não é a mesma de Franz Boas, ainda que, em certa medida, a anuncie. Boas tinha uma concepção particularista, não hierárquica e utilizava esse termo no plural. De outro modo, a concepção de Tylor é universalista, hierarquizada em estágios, utilizada no singular, sendo sinônimo de civilização. Toda a humanidade, inclusive os primitivos, é vista como dotada de Cultura, sendo a diferença explicada mais por uma questão de grau do que de essência, e mais de desenvolvimento do que de origem. De modo que - apesar dessa concepção universalista de cultura, herança do iluminismo francês -, em Tylor ressoa o relativismo do romantismo germânico de Herder (1744-1803) e Gustav Klemm (1802-1867), que influenciaram tanto Tylor quanto Boas na constituição do moderno conceito de cultura e na universalização do estatuto de homem, incluindo os primitivos, que também passaram a ser vistos como detentores de cultura.

7Se as ciências sociais e a antropologia são herdeiras do conceito iluminista de homem, foi no processo de constituição dessas disciplinas que o homem universal foi enquadrado em culturas e sociedades específicas, superando uma visão estritamente abstrata e filosófica. Foi Tylor quem alargou, de maneira definitiva, o conceito de cultura, a qual deixou de se referir unicamente ao universo das idéias e das realizações artísticas e passou a incluir crenças, costumes, artefatos, moral, etc. A concepção de cultura que vingaria na antropologia do século XX encontraria seus germes na reflexão desse autor.

8Diante dessa significativa ampliação da aplicação da categoria cultura, tanto em sua dimensão geográfica e histórica como abrangendo diversas áreas etnológicas – mito, língua, artefato, religião, ritual, costume – , Tylor, em suas obras, manipula enorme quantidade de dados para demonstrar as leis do pensamento e da ação humana. É nesse alargamento significativo das fontes empíricas que de modo pioneiro ele toma a forma de comunicação dos homens surdos-mudos como objeto de reflexão.

Tylor em seu gabinete. Fonte: Wikimedia Foundation

Outra influência capital que ecoa em sua obra é a do orientalista e filólogo alemão Max Müller (1823-1900), tanto no que se refere ao seu método – a comparação – quanto ao seu objeto – a concepção universal de cultura, que se desenvolve na história da humanidade. Esse pensador, estudante de sânscrito, fundador dos estudos indianos e dos estudos comparados da religião e da filologia, tem uma contribuição decisiva para a formulação da teoria que postula as relações genéticas entre o sânscrito e algumas línguas européias (línguas indo-européias). A comparação foi o método por excelência de Müller para fundar um estudo que relacionasse o desenvolvimento histórico da língua, da cultura e da religião.

10Tylor escreveu o capítulo A linguagem gestual com duas intenções relacionadas: a) avançar na demonstração da unicidade do pensamento humano e b) explicitar que o homem pode enunciar seu pensamento e realizar comunicação sem o recurso à língua articulada. Segundo o autor, isso pode ser demonstrado pela linguagem gestual e, também, pela escrita pictórica e pela escrita por palavras. Por um lado, esse texto guarda imensa vitalidade, um frescor de novidade, pois Tylor realiza uma descrição primorosa do que até muito recentemente era desconhecido pela linguística. Por outro lado, contudo, é evidente que, escrito há mais de 140 anos, por um pensador evolucionista, apresente os limites dados por suas condições históricas.

11Tylor realizou pesquisas em instituições educacionais de surdos-mudos na Alemanha e na Inglaterra e realizou uma descrição bastante perspicaz sobre essa linguagem. Compilou uma lista de quinhentos sinais que considerava serem os mais importantes, embora seus informantes afirmassem que essa linguagem possuía mais de cinco mil sinais. A descrição detalhada que Tylor empreende do papel do toque, do apontamento, do olhar direcionado, da imitação das características mais notáveis dos objetos (contorno e movimento) a que se quer simbolizar, da sintaxe, do caso genitivo, do uso de epítetos que representam característica notáveis de pessoas e lugares a que se quer nomear, da expressão facial e corporal etc, não parecerá estranha para aqueles que são usuários de alguma língua de sinais. De modo que o texto traduzido constitui, também, uma boa introdução das características fundamentais dessa forma de comunicação. Além disso, Tylor é bastante sagaz em perceber que a linguagem utilizada por professores adultos nas escolas pesquisadas não podia ser considerada propriamente a linguagem de sinais, haja vista que os professores tendiam a fazer acréscimos a ela de modo a torná-la rigorosamente equivalente à fala e à escrita. De acordo com Tylor, esses acréscimos sequer resistiam à curta viagem da sala de aula ao parquinho, já que as crianças surdas-mudas não utilizavam essas adaptações.

12É necessário considerar, entretanto, que sua explicação fica num plano muito icônico da linguagem, já que a imitação parece ser a matriz constitutiva dessa forma de comunicação. Em sua análise a linguagem de sinais se aproxima muito mais da pantomima do que de uma língua natural (no sentido empregado pelos teóricos da linguística). Além disso, sua explicação nem de longe anuncia propriedades estruturais da língua, algo que ainda precisaria de quase um século para vir à luz com Stokoe (1960) e sua análise fonológica da American Sign Language. È curioso notar, também, que embora Tylor tenha realizado sua pesquisa em instituições de dois países diferentes, em momento algum ele aponta para a nacionalidade desse objeto que estava conhecendo. Ao contrário, a linguagem de sinais descrita pelo autor tem caráter universal, como ele mesmo afirma:“a propriedade comum de toda a humanidade” ([1865] 1870, p. 17-18), ainda que dotada de características locais.

13O sóbrio empirismo inglês que conforma seu estilo, aliado ao rigor científico indubitável, fazem com que Tylor seja bastante contido quanto às suas conclusões. Ele jamais vai mais longe do que seus dados empíricos o autorizam. Como exemplo, embora afirme que muito provavelmente os gestos devam ter desempenhado um papel mais importante do que hoje desempenham na comunicação humana, isso não é suficiente para deduzir que as línguas orais tenham evoluído das línguas de sinais. De modo que o objetivo fundamental do texto é demonstrar que mesmo o surdo-mudo é capaz de pensar de maneira racional sem recorrer à fala.Se as conclusões de Tylor, o reconhecimento do estatuto do pensamento do homem surdo-mudo e - como corolário- a humanização de sua forma de comunicação, a linguagem gestual, podem parecer ao leitor contemporâneo supérfluas, é necessário argumentar que são realmente inovadoras. É consensual na bibliografia sobre surdez e língua de sinais que a história da surdez no século XX foi caracterizada pela proibição das línguas de sinais por questões políticas, filosóficas e científicas (Skliar, 1998; Capovilla, 2001). Não se acreditava no estatuto de língua para as línguas de sinais e duvidava-se de sua capacidade de produzir tanta abstração quanto as línguas orais. É bem verdade que hoje as línguas de sinais possuem legitimidade científica, normatividade jurídica e crescente visibilidade pública, o que tem colocado a surdez e os surdos em quadros explicativos e normativos muito diferentes dos do século passado.

14Talvez o leitor versado nos estudos surdos e na linguística das línguas de sinais esteja estranhando o uso de algumas categorias consideradas não recomendadas para referência às línguas de sinais e aos surdos. Nos justificamos lembrando o caráter histórico dessa apresentação e do texto traduzido. Utilizamos o termo linguagem gestual e linguagem de sinais, ao invés de língua gestual e língua de sinais, para gesture language, pois assim o autor parece caracterizar o seu objeto, como uma linguagem, ainda que em determinadas passagens isso seja dúbio. Mantivemos também o termo surdo-mudo para deaf-mute e deaf and dumb, pois essas eram as categorias correntes no século XIX e em praticamente todo o século XX, mesmo que hoje se prefira a categoria surdo. Esses detalhes explicitam os determinantes históricos que não diminuem o interesse que o texto suscita, já que a maior riqueza que caracteriza esse texto é sua pertinência aos estudos históricos da surdez e das línguas de sinais.

15Por fim, cabe fazer uma consideração sobre a experiência particular desta tradução. Ela foi realizada no âmbito de um grupo de pesquisa sobre surdez, no Núcleo de Antropologia Urbana da Universidade de São Paulo (NAU-USP), coordenado pelo professor Dr. José Guilherme Cantor Magnani. Ela consistiu em uma experiência coletiva que reuniu pesquisadores, graduandos e pós-graduandos, não somente das ciências sociais, mas, também, da linguística, da filosofia e da biologia. Nosso especial agradecimento à Jacqueline Moraes Teixeira (bacharel em ciências sociais) que foi a idealizadora da tradução, assim como aos demais membros que compuseram a equipe: Ligia Maria Venturini Romão (graduanda em ciências sociais), Bernard César Guerrieri (bacharel em ciências sociais); José Agnello Alves Dias de Andrade (graduando em ciências sociais); Tarcisio de Arantes Leite (doutor em estudos linguísticos e literários em inglês); Marcos Baliero (doutorando em filosofia) e Eliseu Frank de Araújo (mestrando em imunologia). Agradecemos, também, a André Xavier (mestre em linguística), pela revisão técnica realizada.

Bibliografia

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