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Entre a “cultura surda” e a cura da surdez: Análise comparativa das práticas da Igreja Batista e da Igreja Internacional da Graça de Deus no Brasil
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Publicado em 2008
Cultura y Religión (En línea), v. II, 3, p. 1-17
César Augusto de Assis Silva
Jacqueline Moraes Teixeira
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Resumo

O objetivo deste artigo é fazer uma análise comparativa entre duas atividades missionárias com surdos no Brasil, a saber, a das igrejas batistas vinculadas à Convenção Batista Brasileira e a da Igreja Internacional da Graça de Deus (IIGD), em seu templo sede. Nesta comparação abordaremos o modo como essas duas experiências protestantes configuram categorias como surdez e cura. Analisaremos primeiramente a lógica da prática missionária nas igrejas batistas na qual a cura da surdez é entendida como uma metáfora da conversão, ao mesmo tempo em que é vista como um sinal diacrítico de um “povo não alcançado” pela mensagem cristã. Em segundo lugar, analisaremos a prática da IIGD, na qual a busca da cura biológica da surdez aparece no discurso oficial como a principal razão de inserção dos surdos nessa instituição. Nossa intenção é demonstrar os diferentes modos de significação da surdez e da cura nas relações estabelecidas entre os agentes que configuram essas práticas, significação essa que nos informa acerca de processos políticos e sociais mais gerais.

Introdução

Recentemente, em um culto da Igreja Internacional da Graça de Deus, no Brasil, o missionário R.R. Soares repetiu a performance de Cristo descrita nos evangelhos: cuspiu em uma das mãos, passou saliva no ouvido de um jovem que se denominava surdo, e ordenou que o demônio da surdez saísse. Enquanto R.R. Soares orava, os fiéis presentes assistiam a tudo maravilhados, bradando palavras de fé. Ao final da performance, o surdo não apenas afirmava estar curado da surdez, como também dava demonstrações de sua cura repetindo oralmente as palavras que lhe eram pronunciadas.

De certo modo, a cena narrada acima não representa um fenômeno excepcional, pois para muitas pessoas a surdez é vista como uma deficiência, ou mesmo uma patologia que demanda cura ou terapêutica. Geralmente ela se torna um fato objetivo a partir de um diagnóstico médico, e a busca da cura, quer seja pela experiência religiosa, como no caso descrito, quer seja via saber médico, pela cada vez mais recorrente cirurgia de implante coclear, são atitudes comuns.

A despeito dessa visão, mais recentemente, em um processo que se radicaliza a partir dos anos 1990, muitas pessoas têm deixado de ver a surdez como uma patologia que demanda cura ou terapêutica. Algumas agências têm reivindicado uma outra visão acerca da surdez, colocando-a em termos de particularidade lingüística e cultural. Pessoas engajadas politicamente, assim como pesquisadores das línguas de sinais e da surdez, passaram não apenas a reivindicar o reconhecimento da língua brasileira de sinais (libras) como língua, mas também a significar a surdez em uma linguagem étnica, afirmando que os surdos constituem um “povo” com língua, cultura e história particulares. Essas categorias que apontam para a etnicidade estavam ausentes na configuração discursiva anterior relativa à surdez. Portanto para tais agências, a surdez deveria deixar de ser vista como deficiência e patologia, e deveria ser reconhecida como diferença.

Tal processo político e científico de auto-afirmação da diferença levou a um reconhecimento jurídico 4 e social em que a libras tornou-se uma língua natural e um meio de expressão legal oriundo das comunidades surdas do Brasil. Esse quadro jurídico tem determinado uma série de alterações institucionais que visa permitir a plena inclusão das pessoas surdas, garantindo educação, informação e comunicação por meio dessa língua. Entre tais alterações podemos citar: a obrigatoriedade do ensino da disciplina libras em determinados cursos de formação superior; a emergência de cursos de graduação em letras-libras, letras-libras/português e tradutor/intérprete-libras/português; a obrigatoriedade da presença de intérprete ou de uma determinada cota de pessoas fluentes em libras em instituições concessionárias de serviços públicos para garantir o pleno atendimento dessa minoria lingüística.

Foi com a intenção de compreender essas transformações históricas na significação e nas práticas relacionadas à surdez “de perto e de dentro” (Magnani, 2002), que temos empreendido uma pesquisa antropológica que analisa o processo de produção dos significados da surdez 5. Logo percebemos que há uma complexa rede social que conecta pontos de encontro, escolas especiais, associações, instituições religiosas, manifestações políticas, fóruns acadêmicos e políticos que debatem temas relacionados à surdez e às línguas de sinais, e veículos de publicização específicos sobre essas questões. Além disso, percebemos que há uma grande heterogeneidade entre as pessoas que participam de tal rede, pessoas que se diferenciam pela audição e/ou pela língua que utilizam, religiosos de diversas correntes do cristianismo, intelectuais com distintas formações (lingüistas, pedagogos, fonoaudiólogos, médicos, psicólogos, etc).

Ao aprofundarmos a nossa etnografia em tal contexto, um determinado fato passou a nos chamar a atenção. Percebemos a presença constante de jovens ouvintes, com trajetória religiosa protestante, que interagiam fluentemente com os surdos através da libras, e que desempenhavam a função de intérprete libras/português. Quando indagávamos sobre a trajetória desses jovens, onde aprenderam a libras e iniciaram a performance da interpretação, identificamos que era o meio evangélico o local por excelência de emergência dessa prática. De modo que nos pareceu que havia algo ocorrendo no campo religioso brasileiro, que estava repercutindo de maneira significativa no modo como as pessoas passavam a se relacionar com a surdez. Tal evidência nos impulsionou a focar parte de nossa investigação na tentativa de compreender quais seriam as práticas desenvolvidas em algumas igrejas evangélicas com relação à surdez, e qual seria a relevância disso para além do domínio propriamente religioso.

Com o avanço de nossa etnografia e da pesquisa bibliográfica sobre a questão, percebemos que de fato o papel das agências religiosas na configuração de discursos e práticas relativas à surdez não era marginal. Como a bibliografia sobre o tema nos informa (Burnier, 1981; Sacks, 1990; Capovilla & Raphael, 2001), os primeiros educadores de surdos em diferentes países foram religiosos. No caso do Brasil, ao longo do século XX, as principais escolas especiais voltadas para a surdez foram fundadas por diferentes ordens católicas (Pastoral dos Surdos, 2006).

Além disso, ideais religiosos parecem ter engendrado práticas pedagógicas que são vistas como etapas da história da surdez. A política pedagógica denominada oralismo, que foi dominante ao longo do século XX, tinha por objetivo fazer o surdo-mudo falar por meio do ensino da articulação e “ouvir” por meio da leitura labial. O desenvolvimento dessa habilidade oral/visual pelo surdo-mudo performatiza em alguma medida um ideal de cura, tal como descrito nos evangelhos. Além disso, a filosofia pedagógica que superou o oralismo, conhecida como comunicação total - isto é, o uso de qualquer forma de comunicação na educação de surdos, como exemplo, o desenho, a mímica, o teatro e a língua de sinais – teve também inspiração religiosa nos versículos de cura para a sua formulação teórica e aplicação prática no contexto escolar protestante luterano (Hoemann; Oates; Hoemann, 1981).

Ademais, as primeiras coletas sistemáticas e publicação por meio de livros, dicionários e manuais do que atualmente denomina-se libras, mas que historicamente recebeu outros nomes, foram realizadas por religiosos de diferentes instituições cristãs, com a intenção de garantir aos surdos a compreensão da mensagem cristã, antes mesmo de essa língua ter o seu reconhecimento científico e a sua normatização jurídica como meio legal de expressão. Como exemplos, o dicionário Linguagem das mãos do padre católico norte-americano Eugênio Oates (1988 [1969]); o livro Linguagem de sinais do Brasil, organizado por luteranos e católicos brasileiros e norteamericanos (Hoemann; Oates; Hoemann, 1981); o dicionário Comunicando com as Mãos produzido pela Convenção Batista Brasileira (Convenção Batista Brasileira, 1983); o dicionário Manual de sinais bíblicos – O clamor do silêncio (Junta das Missões Nacionais da Convenção Batista Brasileira, 1991b) e, por fim, o dicionário Linguagem de sinais da Testemunhas de Jeová (Testemunhas de Jeová, 1992).

Ao avançarmos em nossa etnografia, percebemos que não era por acaso que muitos jovens ouvintes que se comunicavam com desenvoltura em libras e trabalhavam no mercado como intérpretes possuíam trajetória religiosa protestante. Tal fato era decorrente de a prática de evangelização de surdos ser algo bastante disseminado no meio evangélico brasileiro. Muitas igrejas possuem o que se denomina ministério com surdos 6, e desenvolvem a prática da interpretação de cultos e estudos bíblicos em libras. Por conta disso, acabam formando intérpretes, isto é, ouvintes com fluência na interpretação libras/português 7.

Por meio de nossa etnografia, pudemos perceber que, dentre o cenário multidenominacional que evangeliza surdos, as congregações da Igreja Batista de tradição histórica ligadas à Convenção Batista Brasileira possuem um papel de destaque no que se refere à evangelização de surdos e à prática da tradução para libras. Entre as razões para esse destaque podemos citar o seu pioneirismo, o grande número de congregações batistas que possuem ministério com surdos e a grande capacidade de alguns de seus membros, que se tornaram referências no meio religioso em geral, em espraiar essa prática por meio de oficinas 8.

Desse modo, as congregações da Igreja Batista no Brasil se constituíram como um local de expansão da prática de evangelização de surdos para outras denominações de matriz protestante classificadas como pentecostal e neopentecostal9, e também para paróquias da Igreja Católica. Na medida em que essa prática migra para outras instituições, ela parece passar por constantes redefinições. Entre as instituições que incorporaram a prática de evangelização de surdos e da performance da interpretação e as redefiniram em um outro contexto teológico/ritual, inclui-se a Igreja Internacional da Graça de Deus (IIGD). Como pretendemos evidenciar a seguir, por conta de a prática da cura ser central na teologia/prática de tal instituição religiosa - algo que não é central na prática batista tradicional - a cura biológica da surdez acaba sendo um elemento importante em sua experiência.

Isso posto, o objetivo deste artigo é realizar uma análise comparativa sobre os sentidos que a cura da surdez e a própria surdez assumem nessas duas experiências religiosas consideradas, a Igreja Batista e a IIGD. A escolha dessas instituições não é aleatória. Como pretendemos evidenciar a seguir, essa comparação visa explicitar o processo de produção dos significados relativos à surdez nas relações estabelecidas entre determinados agentes que informam sobre processos sociais e políticos mais gerais. Primeiramente consideraremos a Igreja Batista, em que a busca da cura da surdez parece ser metafórica e não biológica, isto é, entendese a surdez como desconhecimento da mensagem cristã – os não-convertidos estão surdos para a palavra de Deus -, sendo a conversão a cura da surdez espiritual em que os surdos originariamente se encontram. Em um segundo momento, consideraremos as práticas da IIGD, em que a cura pretendida, pelo menos na fala oficial dos líderes, é biológica, espera-se produzir um destampar físico dos ouvidos dos surdos. Contudo, como pretendemos demonstrar, essa oposição entre cura espiritual e cura biológica entre as duas instituições não é tão fixa, na prática os sentidos da cura e da surdez estão sempre em negociação.

Para orientar a nossa descrição etnográfica sobre a prática da cura da surdez nas experiências religiosas consideradas, focaremos na triangulação clássica formulada por Lévi-Strauss (1967) sobre o complexo xamanístico. Embora o nosso contexto empírico de investigação em nada se assemelhe ao descrito pelo autor, acreditamos que a sua referência possa nos ajudar a descrever de maneira mais dinâmica o processo analisado. Em tal formulação, a cura envolve uma tríade de posições: i) a posição do xamã, ocupada por aquele que tem em si depositada a crença na eficácia de seus métodos de operar a cura; ii) a posição do doente, ocupada por aquele que experimenta um estado patológico definido socialmente e que acredita na eficácia dos métodos do xamã para a resolução desse estado, podendo ou não experimentar a cura; e por fim, iii) a posição do público que participa como espectador do espetáculo performático da cura e que tem um papel central para fundamentar a crença coletiva na prática de cura.

Como pretendemos evidenciar, a especificidade de nosso contexto empírico de investigação é que a posição do xamã, o operador da cura, é ocupada por uma dupla que às vezes se sobrepõem, se justapõem ou se revezam: o pastor e o missionário-intérprete. Embora o pastor de fato tenha a fala mais autorizada para operar a cura em um ritual pentecostal, por conta de o intérprete ter um papel de mediação central entre o pastor e os surdos, assim como entre estes e a congregação, muitas vezes ele acaba por ocupar a posição de pastor dos surdos, ou no caso considerado, a posição de operador da cura (nem sempre biológica). Na posição passiva de doente, aquele que experimenta a desordem física e/ou simbólica sobre a qual se deve exercer a cura está o surdo. A posição de público/coletividade é ocupada pelos membros da congregação, formada por surdos e ouvintes, que assistem ao espetáculo da cura e por fomentar a crença coletiva na eficácia da cura a ser operada. Partamos então, primeiramente para a experiência batista.

A prática batista: quando a falta se torna “cultura” e a surdez nação a ser alcançada

Conforme iniciamos a nossa etnografia em uma complexa rede social produtora da surdez, percebemos que havia um grande contingente de intérpretes que tinha aprendido libras e a performance de interpretação libras/português em congregações da denominação protestante batista. Além disso, percebemos também que havia uma grande quantidade de ministérios com surdos nessas congregações em diversas cidades brasileiras. O pioneirismo dos batistas na evangelização de surdos, juntamente com algumas outras instituições religiosas 10, pode ser considerado uma das razões para tal destaque. De acordo com a memória de nossos informantes, a atividade missionária batista com surdos iniciou-se no final dos anos 1970, com a vinda para a região de Campinas de missionários norte-americanos. Tal prática foi se difundindo ao longo dos anos 1980 e 1990, primeiramente entre as congregações batistas de tradição histórica, e posteriormente para outras denominações evangélicas.

O que fundamenta as práticas batistas de maneira exemplar é um ideal de missão entre nações. Essa denominação protestante foi implantada no Brasil no fim do século XIX pela vinda de missionários norte-americanos da Convenção Batista do Sul dos Estados Unidos. Desde a sua primeira convenção no Brasil, em 1907, quando fundaram a Convenção Batista Brasileira, já fez parte de suas programações o envio de missionários brasileiros para o exterior (Mendonça, 1989; Oliveira 1999). Essa ética missionária, em que o recém-convertido deve tornar-se um missionário levando a mensagem cristã para o outro, o sacerdócio universal, é reiterada semanalmente em seus congregações. Além disso, outra característica essencial de suas práticas é a organização congregacional segmentada. Os membros se dividem em grupos para o estudo da bíblia, e também para a organização, treinamento, ensaios e execução de diversas atividades específicas voltadas para o que denominam ministérios, que são organizados por diversas motivações, como exemplo, étnico-lingüística (japoneses, chineses, hispânicos, judeus, surdos); faixa de idade (infantil, juniores, jovens, adolescentes); atividade administrativa (finanças, comunicação, informática, patrimônio, divulgação), entre outras motivações específicas de cada congregação. O que fundamenta a escolha individual para a realização de atividades específicas em um ministério é o chamado missionário.

Por influência norte-americana, nas congregações batistas se desenvolveu um modelo específico de missão com surdos. O missionário com surdo é aquele que tem um chamado específico para essa missão, além de ser o líder fundador do ministério na congregação. Ademais, ele atua sobretudo como intérprete lingüístico e cultural, aquele que realiza a tradução simultânea libras/português e a transformação de qualquer signo sonoro em signo visual apreensível aos surdos. Dado o papel de mediação que o intérprete desempenha entre os interesses do ministério e os demais membros da congregação, não raro, o intérprete acaba assumindo a posição de pastor de surdos. Para compreendermos as implicações dessa posição, que sugerimos ser a posição de operador da cura, é necessário primeiramente entender os sentidos que as categorias cura e surdez assumem na prática batista, já que a cura biológica não é uma característica das igrejas classificadas como protestantes históricas 11.

Uma das bases do ministério com surdos é uma interpretação muito específica dos versículos bíblicos transcritos abaixo, em que Cristo opera a cura do surdo-mudo:

Algumas pessoas trouxeram um homem que era surdo e quase não podia falar e pediram a Jesus que pusesse a mão sobre ele. Jesus o tirou do meio da multidão e pôs os dedos nos ouvidos dele. Em seguida cuspiu e colocou um pouco de saliva na língua do homem. Depois olhou para o céu, deu um suspiro profundo e disse ao homem:
– “Efatá” (Isto quer dizer: “Abra-se”)
E naquele momento os ouvidos do homem se abriram, a sua língua se soltou e ele começou a falar sem dificuldade.
Jesus ordenou a todos que não contassem para ninguém o que tinha acontecido; porém quanto mais ele ordenava, mais eles falavam o que tinha acontecido. E todas as pessoas que o ouviam ficavam muito admiradas e diziam:
– Tudo o que faz ele faz bem; ele até mesmo faz com que os surdos ouçam e os mudos falem!
(Marcos 7.32-37 Bíblia Sagrada, 2001)

De acordo com a passagem bíblica citada, ao proferir efatá 12, Cristo operou a cura do surdo-mudo – seus ouvidos foram destampados e sua língua se soltou. Por conta disso, esses versículos são constantemente referidos nos rituais religiosos em que surdos participam, assim como a categoria efatá é geralmente apropriada para nomear alguns ministérios, grupos de evangelização/catequese e para ser tema de encontros religiosos. Além disso, tal passagem bíblica parece inspirar práticas relativas à surdez que extrapolam o contexto exclusivamente religioso. Como já mencionado a filosofia pedagógica oralista parece ter tido a sua conformação nesse ideal de cura do surdo-mudo. Ademais, não é somente a prática disciplinar oralista que expressa a institucionalização do efatá. A coleta sistemática de “gestos” do que o padre católico Eugênio Oates denominava linguagem das mãos tinha por objetivo operar o efatá, isto é, fazer com que os surdos-mudos pudessem ouvir com os olhos a mensagem cristã (1988 [1969]: 12). Embora a linguagem das mãos não fosse vista como uma língua natural (no sentido empregado pelos lingüistas) independente da língua oral, o objetivo de Oates era fazer com que por meio de “gestos” a língua oral tivesse uma maior visualidade, permitindo uma ampliação da capacidade de compreensão da mensagem cristã por parte daqueles que não ouvem. De certo modo, a prática batista pode se vista como o aprofundamento da exegese do efatá como cura metafórica operada pela mediação da língua de sinais.

Como já comentado, a busca por cura de um mal biológico não tem centralidade na teologia/prática batista, diferentemente das igrejas classificadas como neopentecostais, como é o caso da IIGD que trataremos a seguir. No caso específico do ministério com surdos, o que se produziu foi a atribuição de um outro sentido à surdez, no qual ela não significou a incapacidade de audição, mas sim a incapacidade de ouvir a mensagem cristã, e portanto, o seu desconhecimento prévio. De modo que os surdos na teologia/prática desse ministério não ocupam a posição de doente a que se deve operar a cura pelo fato de não ouvirem, mas sim por constituir um “povo não cristianizado” ou um “povo não alcançado” que precisa “ouvir” a mensagem cristã. De modo que, o objetivo central da atividade missionária com surdos foi fazer com que fosse possível a produção de um efatá metafórico, isto é, um abra-te que garantisse com que os surdos “ouvissem” com os olhos a palavra de Deus, e que fossem curados desse estado anterior de ignorância do verdadeiro conhecimento cristão. Por conta disso, a performance da interpretação libras/português torna-se o cerne dessa missão.

Como temos analisado por meio de nossa etnografia, o milagre da cura do surdo está performatizado de maneira muito específica nos cultos batistas. As apresentações do ministério com surdos para a congregação ouvinte são em sua maioria apresentações musicais e dançantes. Tudo se passa como se os surdos estivessem ouvindo as músicas que tocam, já que suas performances corporais estão plenamente ajustadas a elas, como toda a congregação ouvinte pode atestar. Contudo, tudo também se passa como se a congregação não estivesse vendo o intérprete escondido na platéia, ou no fundo do templo, passando as devidas marcações que orientam os surdos a dançarem conforme a música. De modo que metaforicamente surdos não apenas “ouvem” a palavra de Deus, mas também “ouvem” toda a realidade sonora dos cultos, sobretudo os louvores.

Desse modo, a surdez no interior do ministério com surdos não é vista como uma deficiência ou patologia, mas como um traço distintivo de um “povo a ser alcançado”. Nessa concepção, foi justamente a falta da audição que conformou uma “cultura” específica (Junta de Missões Nacionais da Convenção Batista Brasileira, 1991a; 2000), que é a característica desse “povo”. Assim, a constituição do ministério com surdos se deu no processo de tradução da lógica da missão transcultural para a surdez. Para que sejamos mais claros, do ponto de vista dos protestantes de tradição fundamentalista para que um “povo” seja considerado alcançado pela missão cristã é necessário que a bíblia esteja traduzida para a sua língua, e que pelo menos um membro nativo da “comunidade” tenha se convertido e se tornado um novo missionário a serviço da evangelização de seu “povo” (cf. Almeida, 2006). Essa é a razão pela qual a tradução lingüística e cultural desempenha um papel crucial na atividade missionária protestante, sendo que categorias como povo, língua e cultura são pensadas tecnicamente como equivalentes, o que parece ter autorizado a colocação da surdez em uma linguagem missionária e culturalista.

Embora nessa atividade missionária a surdez possa ser vista como sinal diacrítico de um povo - o “povo surdo”-, ela não deixa de ser vista também como um sinal do pecado original dos descendentes de Adão e Eva, isto é, como um fruto da natureza pecaminosa do homem. Desse modo, embora a cura biológica de tal mal não seja buscada nas práticas batistas, a conversão dos surdos visa possibilitar que no porvir, após a morte, pessoas surdas que estejam salvas deixem de ser surdas no céu. Para que isso se realize é fundamental garantir primeiramente a cura da surdez espiritual, o desconhecimento da mensagem cristã.

Como temos analisado por meio de nossa etnografia e de relatos de informantes, o processo de constituição do ministério com surdos nas congregações da denominação batista é em grande medida produzida pela agência do missionário-intérprete. Tal ministério não se constituiu primeiramente como um projeto da alta hierarquia da instituição, ou por meio de uma determinação de pastores, mas sim foi forjado por uma rede formada por jovens missionários que afirmavam ter um chamado para essa missão. De modo que o processo de produção do ministério com surdos é concomitante com a produção da performance da interpretação. Além disso, o ministério e essa performance se constituíram também na medida que o intérprete pode argumentar de maneira plausível em sua congregação local sobre uma concepção de surdez que fosse metáfora da falta espiritual, ao mesmo tempo em que ela passou a ser afirmada em termos de particularidade étnico-lingüística.

Embora esteja cada vez mais naturalizada como local de performance da interpretação libras/português um dos lados do palco em que o ministrante da palavra fala, não foi assim que ela se iniciou, nem mesmo no contexto religioso. De acordo com relatos de nossos informantes, os intérpretes pioneiros que coletivamente cunharam essa performance iniciaram no fundo dos templos, ou nas galerias superiores. Para garantir uma maior funcionalidade dessa performance, o intérprete se dirigiu paulatinamente para o palco, e os surdos tiveram os seus lugares fixados nas primeiras fileiras de um dos lados do templo.

O processo de legitimação desse espaço privilegiado em cultos se conquistou por meio de negociação com a congregação. Não raro, alguns membros da congregação se colocavam contrários à fixação dos surdos nas primeiras fileiras dos templos por tratar-se de um local privilegiado; outros também se opunham a presença do intérprete no palco, pois a expressividade da interpretação poderia comprometer a concentração dos demais fiéis nos cultos. Líderes da congregação, como músicos, pastores e diáconos, geralmente também se opunham a ocupação do espaço no palco pelo intérprete. Embora cada vez mais haja uma tendência para a institucionalização desse espaço em instituições religiosas diversas, ele ainda permanece alvo de negociação entre diferentes membros nas congregações locais.

Apesar de essas relações muitas vezes conflituosas estabelecidas entre outros membros e intérpretes dentro das congregações, os intérpretes parecem ter conseguido, por meio de um discurso missionário e culturalista, legitimar um lugar privilegiado nos cultos para sua prática de interpretação, assim como um espaço em congressos missionários e na destinação de verbas para essa missão específica. Ao incorporar estudos científicos referentes à surdez e à libras em seu argumento missionário, a concepção de que os surdos constituem um “povo não alcançado” ganhou maior plausibilidade.

Como nossa etnografia tem revelado, a conversão - isto é, o “ouvir” as boas novas, a sua compreensão subjetiva e sua aceitação por parte dos surdos -, é vista como a cura de um estado anterior de privação e falta, a partir da qual surge, em termos nativos, um outro estado de benesse, felicidade e completude. Os testemunhos públicos - performance estruturante do protestantismo - revela de maneira exemplar as curas que a conversão produz. O período anterior à conversão é narrado como uma fase de desconhecimento da mensagem cristã; nervosismo; não fluência em libras e na língua portuguesa; solidão; falta de amigos; desemprego; desentendimento familiar; rendimento escolar negativo; etc. Após a conversão, o surdo experimenta um outro estado, pois a aceitação do cristianismo é vista como concomitante à cura do nervosismo; aquisição da fluência em libras e na língua portuguesa; ampliação do círculo social; conquista de emprego; um maior rendimento escolar; resolução dos conflitos familiares, etc.

De modo que, em grande medida, nas práticas batistas se afirma que o surdo não precisa da cura biológica da surdez, mas sim do reconhecimento de sua particularidade lingüística e cultural e da garantia de igualdade lingüística perante aos ouvintes, isto é, o direito à interpretação, à participação, à comunicação e ao estudo bíblico por meio de sua língua. Evidentemente que nem todos na congregação partilham dessa visão da surdez, mas o ministério com surdos propaga essa concepção.

Em síntese, procuramos explicitar algumas características da atividade missionária batista com surdos. Em grande medida, quem ocupa a posição de o operador de cura, é o missionáriointérprete. Seguindo o modelo de missão com surdos importado dos Estados Unidos, ele é o fundador do ministério com surdos, assim como o produtor de uma concepção de surdez, plausível na congregação local, que é a um só tempo metáfora do desconhecimento da mensagem cristã e sinal diacrítico de um “povo a ser alcançado”, o que acabou desenhando a surdez afirmada em uma linguagem étnica. Esse processo se constituiu ao garantir um espaço institucional para esse “grupo” no interior das congregações protestantes. Na medida em que essa atividade missionária específica se desdobra para outras experiências religiosas, por meio de uma rede intérpretes, ela passa por alterações significativas. Consideremos como essa atividade se reformula na experiência da IIGD.

A experiência da Igreja Internacional da Graça de Deus: A cura negociada

No final de 1999 uma intérprete de libras de trajetória protestante batista, bastante conhecida no meio religioso que se ocupa da evangelização dos surdos, foi convidada para interpretar os cultos da IIGD, templo sede, transmitidos pela televisão. De acordo com relatos de informantes, a fim de constituir essa prática nessa instituição tal intérprete passou a treinar outros fiéis ouvintes para que eles se tornassem intérpretes também. De modo que a prática de evangelização de surdos na IIGD pode ser vista como mais um dos muitos desdobramentos da prática batista.

Entretanto, há uma diferença significativa entre a forma como a IIGD desenha o seu projeto de evangelização de surdos em relação ao modelo encontrado em outras igrejas de matriz protestantes. Nessa experiência, os surdos são estimulados a buscarem a cura biológica da surdez, que segundo o discurso teológico da IIGD, pode ser dada a todos mediante a ação do espírito santo. Na performance de cura nos cultos é comum os surdos imporem as suas mãos sobre os seus ouvidos, objetivando a operação biológica do efatá.

Os cultos da IIGD com tradução simultânea para libras vão ao ar pela Rede Bandeirantes desde meados de 2000. A visibilidade promovida pela televisão propiciou em um curto espaço de tempo a vinda de vários fiéis surdos para essa igreja. Foi também por esse meio de divulgação que assistimos à transmissão de um culto no qual acompanhamos um ritual de cura de um surdo, descrito no início deste artigo. Justamente por ser uma instituição bastante afeita a essa tecnologia de mídia, a sua experiência com surdos parece ter tido um importante papel no processo de divulgação da interpretação televisiva 13.

Diferentemente das congregações da denominação batista, geralmente o efatá que se busca na prática da IIGD não é espiritual, ou seja, a surdez não parece sempre ser vista como uma metáfora que simboliza a ausência da conversão ou o desconhecimento da mensagem cristã. Em grande medida, sobretudo na fala oficial dos pastores, a cura que se busca é biológica, reiterando a surdez como uma doença passível de ser curada. O evento de cura da surdez, assim como outros eventos que etnografamos, constituem a explicitação dessa concepção da surdez como algo equivalente a outras doenças, que se busca cura cotidianamente.

A cura aparece em inúmeras pesquisas que se dedicam à análise dos fenômenos do que se denomina neopentecostalismo (Freston, 1996; Mendonça, 1997; Sieperski, 2001). Ela é tratada por esses autores como o pilar de sustentabilidade da teologia neopentecostal. Na obra de Ricardo Mariano (1999), intitulada Neopentecostais, as igrejas neopentecostais também são classificadas como igrejas da cura. Nelas, a cura é considerada o mais importante dos dons, apesar de elas trazerem em sua gênese uma herança peculiar do pentecostalismo: a ênfase nos dons espirituais, entre os quais a glossolalia é cultivada como o dom central.

Em quase todos os cultos semanalmente realizados pela IIGD, a cura aparece como fonte central da manifestação do espírito santo. No discurso teológico apresentado aos fiéis, um corpo saudável é um corpo que pode se restabelecer pela fé diante de qualquer doença. A cura dos males do corpo é para essa teologia um direito atestado por Deus. Portanto, a doença deve ser exorcizada por representar, em todos os sentidos, a ação direta de um demônio. Em um dos livros sobre cura escrito pelo próprio R.R. Soares, é retratado de forma clara o papel da saúde e da doença nessa prática teológica, e, portanto, a importância da cura:

Veja o que acontece quando você não exige os seus direitos, bem como observa as maravilhosas declarações que o Senhor colocou nas escrituras, mas não as reivindica: o demônio e seus representantes começam a edificar seu reino maligno na sua vida. Ele começa pelo seu corpo, um dia ele finca uma estaca no seu rim; no outro, prega um sarrafo no estômago, uma tábua na cabeça, põe um prego na bexiga e um pouco de concreto na vesícula. Quando você já está com grandes dificuldades, em vez de expulsar o maligno e conseguir a cura, firme na fé, amarrando-o e exigindo a saída dele e de seus representantes em o Nome de Jesus por meio da Palavra, você começa a reclamar, a lamentar-se e perguntar a todo o mundo o porquê de tanto sofrimento. (...) Não aceite uma orientação que contradiga a Palavra de Deus. Ela diz que você já foi curado pelas feridas de Jesus; ela declara que você já foi sarado, basta ordenar que o demônio da sua doença deixe seu corpo (Soares, 2001).

No caso específico da surdez, podemos dizer que a centralidade da cura no discurso teológico de igrejas classificadas como neopentecostais tem sido atestada por nossa etnografia na IIGD. Na grande maioria dos cultos que observamos, o missionário R.R. Soares, ou seu pastor auxiliar, pede para que ouvidos surdos se abram, e desafiam os surdos para que tirem o aparelho auditivo e ouçam sem ele. Essa atitude está sempre presente no discurso teológico da IIGD e é fundamentada pela idéia de direito de desfrutar saúde, sempre mediada pela fé. A centralidade da cura também se verifica nos testemunhos relatados pelos fiéis. Nos cultos, há um momento em que todos os fiéis são estimulados a declarar que foram totalmente curados do mal que os afligiam, e esse é acompanhado por uma sessão de depoimentos individuais em que os fiéis testemunham suas curas. No caso dos surdos, mesmo quando eles afirmam terem sido curados de outros males, uma gripe por exemplo, os pastores recomendam que a verdadeira cura a ser buscada ainda deve ser a cura da surdez, já que esse é o maior mal que os aflige.

Por um lado, o discurso oficial da IIGD revela que os surdos estão inseridos nessa igreja prioritariamente pela busca da cura biológica da surdez, já que a cura é o elemento central de sua teologia/prática. Seguindo o modelo levistraussiano da tríade de posições da cura, o xamã nesse caso seria o pastor, aquele de detêm os meios legítimos de operar a cura; o doente seria o surdo, aquele que tem como mal a surdez; e a coletividade seria a congregação, que acredita que a surdez é uma doença passível de cura como todas as demais. Contudo, por meio de nossa etnografia, temos percebido que mesmo na experiência da IIGD, tanto a surdez quanto a cura podem receber outros significados, o que aproxima essa experiência da prática protestante batista. Em alguma medida, tanto para os intérpretes como para os freqüentadores surdos da IIGD a surdez aparece também como um sinal diacrítico que caracteriza um grupo lingüístico, e não somente como uma patologia a ser curada. Em muitos casos, o mal a ser prioritariamente curado não é a surdez, mas sim a cura de quaisquer outros males sejam físicos ou espirituais (gripe, nervosismo, solidão, desemprego, etc) que os surdos padeçam.

Na fala dos intérpretes da IIGD, a expressão utilizada para fazer referência ao surdo que protagonizou o evento da cura da surdez é “surdo-curado”. Sempre que eles relatavam acontecimentos a respeito de algo sobre os surdos, o jovem “curado” continuava a ser classificado juntamente aos demais freqüentadores surdos. Geralmente, a expressão “surdocurado” aparece em momentos em que exemplos de cura são citados.

Portanto, podemos concluir que os significados das categorias surdez e cura não estão dados de antemão na prática missionária dos agentes da IIGD. Se por um lado, para os pastores - que detêm legitimidade para operar a cura – o surdo estaria fundamentalmente incluído nas práticas litúrgicas da IIGD pela busca da cura biológica da surdez, cura esta que visa transformar o surdo em ouvinte pela atitude física de “abrir os ouvidos”, por outro lado, para os intérpretes – operadores da cura em um sentido espiritual como nas demais igrejas protestantes – a cura estaria fundamentalmente relacionada a algo mais metafórico do que físico, e, nesses termos, ela não eliminaria a surdez, e nem transformaria o surdo em ouvinte: ela o converteria.

Considerações finais: Os significados da surdez

O objetivo deste artigo foi realizar uma análise preliminar das redes sociais que conformam diferentes significados relativos à surdez. Embora ela seja majoritariamente vista como deficiência e patologia – objeto das ciências médicas – algo que demanda cura e/ou terapêutica, mais recentemente e de maneira crescente tem se produzido uma outra concepção em que a surdez não é vista como patologia e anormalidade, mas como algo que caracteriza um grupo com particularidade lingüística e cultural.

O foco desta reflexão foi a produção da surdez por algumas agências religiosas. Como nossa investigação tem revelado, historicamente as instituições religiosas desempenharam um papel crucial fundando escolas especiais relativas à surdez; desenhando práticas pedagógicas; realizando coletas sistemáticas e editando dicionários do que hoje se denomina libras. Além disso, identificamos também uma grande quantidade de instituições religiosas, sobretudo protestantes, que evangelizam surdos, tendo a performance da interpretação libras/português sido, em certa medida, gestada nessas experiências.

Dado o escopo deste artigo nos limitamos a realizar uma análise comparativa dos significados da cura e da surdez entre as práticas das congregações da denominação batista e da IIGD. A Igreja Batista se caracteriza por ser uma das instituições pioneiras na evangelização de surdos, e por ter de maneira paradigmática concebido a surdez como traço distintivo de um “povo não alcançado” pela mensagem cristã. A surdez em termos práticos também é vista como metáfora do desconhecimento da palavra de Deus, algo que missionários visam superar, fazendo com que surdos “ouçam” com os olhos.

Essa produção missionária cristã da surdez em uma linguagem étnica encontra ressonância em um processo político-científico exterior à dimensão religiosa, embora não inteiramente desconexo a ela. Ao longo dos anos 1990 forjou-se um espaço acadêmico em que a surdez e às línguas de sinais tornaram-se objetos das ciências humanas. Por influência de pesquisas norte-americanas de lingüistas que reconheceram cientificamente o estatuto de língua da American Sign Language, sobretudo Stokoe (1960), assim como por investigações que têm constituído o que se denomina Estudos Surdos (Lane, 1984; Sacks, 1990; Padden & Hunphries, 1988; Skliar, 1998, 1999), tem emergido uma grande quantidade de pesquisas e publicações sobre surdez e línguas de sinais que visa se contrapor a concepções da surdez enquanto deficiência, afirmando-a em termos de particularidade étnico-lingüística.

Evidentemente que essa crescente leitura étnica da surdez não faz extinguir outros discursos e práticas que significam a surdez como deficiência, patologia, falta e doença. Mesmo no meio religioso em que a leitura da surdez como diferença lingüística tem se tornado bastante difusa - tendo em vista o grande número de instituições que evangelizam os surdos por influência dos protestantes históricos -, na medida em que essa prática se desdobrou para a IIGD, ela não recebeu o mesmo tratamento. Por um lado, a inclusão de surdos em seus rituais se deu como um grupo fundado em uma particularidade lingüística, mas por outro como um grupo que deve ser curado de sua doença, a surdez.

Nosso objetivo neste texto não foi apresentar uma análise em que os significados relativos à cura e à surdez fossem estáticos. Embora essa comparação tenha nos revelado modelos diversos de lidar com a surdez, ainda assim, isso não significa que a surdez sempre aparecerá relacionada à cura física na IIGD, ou que aparecerá em termos de “cultura surda”e de cura como metáfora da conversão na experiência batista. O que pretendemos demonstrar é que os significado da surdez não podem ser tomados de antemão, já que são negociados pelos agentes na medida em que as relações são estabelecidas.

Notas

4 A libras foi reconhecida juridicamente pela Lei Federal 10.436 de 24/04/2002 e regulamentada pelo Decreto Federal 5626 de 22/12/2005.
5 Desde 2002, no Núcleo de Antropologia Urbana da Universidade de São Paulo (NAU), sob coordenação do professor Dr. José Guilherme Cantor Magnani, temos realizado uma série de etnografias com o objetivo de compreender essas novas e múltiplas experiências relacionadas à surdez Esta pesquisa integra um grupo multidisciplinar sobre surdez e libras denominado Estudos da Comunidade Surda: língua, cultura e história, coordenado pelo Dr. Leland McCleary, professor do Departamento de Letras Modernas da Universidade de São Paulo.
6 Este é o nome usual que as igrejas de matriz protestante dão ao segmento de evangelização de surdos no interior da congregação, geralmente constituído por sala, materiais específicos, líder, intérpretes, estudantes, reuniões, cronogramas, etc.
7 Entre as denominações de tradição protestante que constatamos haver essa prática na cidade de São Paulo-SP, podemos citar, de maneira não-exaustiva: Igreja Batista, Assembléia de Deus, Igreja Batista Renovada, Comunidade da Graça, Igreja Internacional da Graça de Deus, Renascer em Cristo, Casa de Oração para Todos os Povos, Congregação Cristã do Brasil e Igreja Universal do Reino de Deus. Além disso, com um trabalho um pouco diferenciado e como exemplo de instituições não protestantes, podemos citar paróquias da Igreja Católica e Salões do Reino da Testemunhas de Jeová.
8 Provavelmente a migração de pessoas de igrejas protestantes históricas para pentecostais e neopentecostais, de que fala Almeida (2004), parece ter contribuído também para o espraiamento dessa prática.
9 Para a classificação das igrejas de matriz protestante no Brasil ver Mariano (1999) e Giumbeli (2001).
10 De acordo com os nossos dados etnográficos, além de a Igreja Batista, a Igreja Católica, a Igreja Evangélica Luterana do Brasil e a Testemunhas de Jeová são as instituições religiosas pioneiras no trabalho de evangelização de surdos.
11 De acordo com a antropologia e a sociologia da religião no Brasil as igrejas protestantes históricas são aquelas que remontam à Reforma Protestante e foram introduzidas no Brasil via imigração européia ou missão norte-americana. Entre suas principais característica podemos citar a oposição aos princípios teológicos católicos; a bíblia como única mediadora entre os homens e o deus cristão; o sacerdócio universal e a organização congregacional.
12 Efatá, effata, ephata ou ephphata, do grego εφφαθα, significa “abra-te”. Utilizo esse termo que é sua transliteração para o português (Bíblia Sagrada, 2001).
13 No Brasil, a IIGD além de transmitir seus cultos e inúmeros programas pela Rede Bandeirantes e pela Rede TV, também possui uma emissora de televisão (TV RIT). Segundo informações dadas pelo próprio R.R. Soares nos cultos e outras divulgadas no site da igreja, a RIT transmite os cultos da IIGD para mais de sessenta países.

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