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O Intérprete de Língua de Sinais como Sujeito no Ato de Linguagem
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Publicado em 2008
Simpósio Internacional sobre Análise do Discurso. Belo Horizonte: UFMG
Maria Cristina Pires Pereira
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Resumo

Este artigo tem como tema uma reflexão, sob a perspectiva semiolingüística, sobre a representação do intérprete de língua de sinais como sujeito, plenamente engajado e ativo, no ato de linguagem. Tanto nas pesquisas sobre a interpretação de línguas vocais como naquelas sobre a interpretação de língua de sinais, a concepção da comunicação como um processo linear é dominante. Apresento, aqui, uma visão geral sobre a evolução histórica das abordagens sobre o ato de linguagem, até a Semiolingüística (CHARAUDEAU, 1983, 2001, 2005). Coloco a questão de que a maioria dos atos de linguagem representados até hoje são diádicos, mas um encontro entre uma pessoa surda e uma ouvinte, em presença de um intérprete é, essencialmente, triádico e todos os parceiros participantes compartilham a responsabilidade pelo sucesso do intercâmbio da interação. Ao final, proponho uma especulação sobre os atos de linguagem, triádicos, mediados por intérpretes de língua de sinais.

1. Intérprete de língua de sinais: o eu que não é eu, o tu que não pode ser, quem é ele/ela?

O estatuto linguístico das línguas de sinais foi, inicialmente, evidenciado pelo linguista estadunidense William C. Stokoe (1960/2005), no começo da década de sessenta e, atualmente, diversos pesquisadores direcionam seus trabalhos para os estudos das línguas sinalizadas, dentre os quais: Ceil Lucas, Dan Slobin, Dennis Cokely, Diane C. Lillo-Martin, François, Grosjean, Sherman Wilcox, Ulrike Zeshan, Ursula Bellugi, e, no Brasil, com a Língua de Sinais Brasileira (Libras), Lucinda Ferreira Brito, Eulália Fernandes, Ronice Muller de Quadros, Lodenir Karnopp, e toda uma nova geração de linguistas que vem, aos poucos, ampliando as possibilidades de investigação nesta área.

Se já não é razoável questionar o estatuto linguístico das línguas de sinais, por outro lado a situação dos intérpretes de língua de sinais (ILS) ainda é indeterminada e instável. No imenso universo de pesquisa que as línguas de sinais vislumbram para os linguistas, a interpretação interlíngue 1 é o tema mais carente de investigações. Considerados, por muitas pessoas, como agentes caritativos, ajudantes dos surdos, quando não seus tutores linguísticos, os ILS ainda lutam por ter a sua profissão reconhecida, não só legalmente, mas pela sociedade e nos meios acadêmicos. Recentemente, em dezembro de 2006, aconteceu o 9ª Congresso Internacional de Aspectos Teóricos das Pesquisas nas Línguas de Sinais 2 em que linguistas do mundo inteiro fizeram conferências e apresentações de trabalhos sobre os mais diversos aspectos das línguas de sinais. A amostra da pouca atenção dada à interpretação de língua de sinais, é encontrada no caderno das apresentações deste congresso, em que existem 112 trabalhos listados no sumário, porém, dentre estes, somente 3 referem-se aos intérpretes e à interpretação.

Os estudos linguísticos sobre as línguas de sinais, em geral, têm sido fortemente marcados por uma abordagem gerativista da linguagem e a maioria dos trabalhos de pesquisa está concentrada em aspectos sintáticos. Sou pesquisadora em Linguística Aplicada, intérprete de língua de sinais, e encontrei na perspectiva da semiolinguística uma possibilidade inovadora de investigação sobre um ato de intermediação interlíngue, que ocorre em presença de um intérprete de língua de sinais. O termo ‘semiolinguística’ abrange:

Semio-, de “semiosis”, evocando o fato de que a construção do sentido e sua configuração se fazem através de uma relação forma-sentido (em diferentes sistemas semiológicos), sob a responsabilidade de um sujeito intencional, com um projeto de influência social, num determinado quadro de ação; linguística para destacar que a matéria principal da forma em questão - a das línguas naturais (CHARAUDEAU, 2005, p. 13).

Charaudeau (2001, p. 23) quando questiona sobre a incapacidade da sintaxe, tão bem e minuciosamente estudada em inúmeros trabalhos acadêmicos, em dar conta das “expectativas psicossociais produzidas em um ato de linguagem” me conduz a refletir sobre o exercício da interpretação interlíngue que é, primordialmente, uma intermediação social. Visto, por muitos, como um “telefone” ou um conduto que passa mensagens de um lado a outro, poucos se atrevem a pensar o ILS como um ser humano, como um sujeito, também envolvido no agir linguístico. A idéia do intérprete máquina/ferramenta/telefone ainda continua atuante em muitos espaços de formação de intérpretes de língua de sinais e surgiu como uma reação ao intérprete caritativo que atuava por piedade ou assistencialismo, assumindo o discurso dos surdos e respondendo por eles (BAR-TZUR, 1999). A adoção de normas de neutralidade e imparcialidade veio como uma forma para que as pessoas surdas pudessem ter assegurado o seu direito de expressão. O próprio regulamento interno dos intérpretes, da Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (Feneis), enfatiza esta conduta quando postula que o ILS deve

Ser imparcial: o quanto mais imparcial, melhor. Não poderá emitir opiniões ou comentários no que ele próprio está interpretando, a não ser que perguntem a sua opinião. O intérprete deverá ter tão somente o cuidado de passar a informação para Libras e/ou Português. Não é ele que está falando. Ele é apenas a ponte de ligação entre os dois lados [grifo meu] (QUADROS, 2002, p 43).

No entanto, esta, suposta, neutralidade, não é isenta de polêmicas, pois como seres sociais e culturais não somos neutros e nossas concepções transbordam na forma em que nos expressamos por meio da linguagem. Ser uma “ponte” não nos tira a subjetividade. E mais, sob esta metáfora, não estamos somente ligando um lado ao outro, mas estamos apoiados em ambas as extremidades. Ser e não-ser em um ato de linguagem é o dilema que acompanha a vida profissional dos ILS. Somos o eu, proibido de se enunciar como eu, e falamos no lugar do outro como se ele/ela fosse eu. Afinal, quem é o intérprete interlíngue em um ato de linguagem? Qual a nossa posição como sujeitos? Dentre as muitas interrogações que estas questões levantam, escolhi direcionar meu olhar, neste texto, para os modelos de linguagem./comunicação e suas representações dos sujeitos.

Desde tempos remotos que existem várias tentativas de representar o ato de linguagem. Seja na Linguística ou na chamada Teoria da Comunicação, diversos modelos foram idealizados na busca de esquematizar como seria uma interação linguística entre humanos. Em comum, todos os modelos abordam uma perspectiva diádica, ou seja, duas pessoas interagindo por meio, principalmente, da língua. O grande desafio deste ensaio é pensar em como seria representada uma relação exclusivamente triádica, como é a interpretação interlíngue, em que a figura do intérprete sempre vai estar intermediando uma interlocução entre duas ou mais pessoas e considerar as especificidades surgidas do fato de que, uma das línguas, é uma língua visualespacial (cinestésica). Para tanto, faço uma breve retomada dos modelos de ato de linguagem mais comuns.

2. Modelos Tradicionais do Ato de Linguagem

Antes de a Linguística firmar-se como ciência, já existiam várias teorias de como se processava uma interação linguística, porém iniciarei minhas conjecturas a partir do autor fundante da disciplina, Ferdinand de Saussure. O modelo proposto por Saussure (1916) pressupõe duas pessoas, interagindo por meio vocal e auditivo, em uma relação extremamente simétrica. O que é pensado, como língua, é vocalizado e captado pelo sistema auditivo do interlocutor, de onde é transmitido, diretamente, ao seu cérebro, como uma mensagem transparente e inequívoca. Os dois interlocutores sabem exatamente o que o outro pensa, pois o obstáculo maior para uma compreensão total dos pensamentos alheios é verbalizar, cada um, as suas intenções. Eventuais distorções são creditadas a fatores físicos externos (ruídos, má articulação, problemas de audição) ou a problemas fisiológicos na recepção (deficiência auditiva ou desordens cerebrais).

Figura 1 - Ato de linguagem segundo Saussure, 1916 (BONINI, 2003)

O modelo mais conhecido e ensinado é, no entanto, aquele proposto por Roman Jakobson (1963). Largamente divulgado, é tido como padrão para estudos que se relacionem à comunicação humana. Apesar de constituir um avanço, comparado à abordagem saussuriana, pois considera outras dimensões envolvidas em uma ação de linguagem, porém ainda não posiciona as pessoas falantes como sujeitos. O foco é na função que a linguagem exerce.

Figura 2 - Ato de linguagem segundo Jakobson, 1963 (BONINI, 2003)

Ambos os modelos representam um ato de linguagem em que duas pessoas, revezando-se nos papéis de remetente-emissor e destinatário-receptor, são objetos das circunstâncias. Com o passar do tempo, os Estudos da Enunciação, iniciados por Benveniste (1966/1995), põem em evidência as questões da subjetividade na linguagem, ou seja, a capacidade dos locutores de um ato de linguagem de se instaurarem como sujeitos, pois “É na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito; porque só a linguagem fundamenta na realidade a sua realidade e que é a do ser (...)” (op. cit., p. 286). Embora ainda siga ignorada por muitos, a subjetividade na linguagem gerou novos panoramas no estudo da Linguística. Dentre eles, e a partir do mesmo Benveniste, a noção de intersubjetividade, que capacita as interações linguísticas, levou à concepção de um ato de linguagem assimétrico, não-transparente e não linear.

3. Semiolinguística: por um modelo assimétrico e opaco do ato de linguagem

Em contrapartida aos modelos simétricos, Charaudeau (1983, p. 25) propõe um esquema diferenciado do ato de linguagem, pois as circunstâncias de produção e de interpretação dependem “dos saberes pressupostos que circulam entre os sujeitos da linguagem” e que não foram consideradas anteriormente. Um dos aspectos de ruptura, da semiolinguística, é a representação dos sujeitos no ato de linguagem que, segundo esse modelo, é um encontro dialético entre o processo de produção e o de interpretação, é um ato interenunciativo entre quatros sujeitos, e não dois, como nos modelos anteriores (op. cit., p.38). 3 Em sua teoria dos sujeitos da linguagem, não existe mais um remetente-emissor, ativo, e um destinatário-receptor, passivo, pois o sujeito destinatário desempenha um papel vivamente dinâmico na construção de suas interpretações sobre as intenções de seu interlocutor. vistos não como somente dois, mas desdobrados de acordo com seus papéis. Os sujeitos são desdobrados no eu comunicante (EUc), que inicia o processo comunicativo e no tu interpretante (TUi) que faz a interpretação do que foi dito, escrito ou sinalizado. Além destes, no mesmo ato de linguagem, ainda participam o eu enunciador (EUe) , que é a imagem de si mesmo que o eu comunicante projeta para o tu interpretante e o tu destinatário (TUd) que é a imagem que o eu comunicante faz do tu interpretante.

A figura 3 mostra como é representado um ato de linguagem sob a perspectiva semiolinguística.

Figura 3 - Ato de linguagem, segundo Charaudeau (PIRES PEREIRA, 2007)

O circuito externo é o lugar do fazer e o circuito interno é a realidade do dizer, ambos são indissociáveis um do outro. O ELE indica aquilo sobre o que se fala e que, também, tem sua representação na esfera da produção e da interpretação do fazer (x) e na encenação do dizer (°) (CHARAUDEAU, 2001).

A partir do que foi visto, até agora, como imaginar um modelo de representação de uma situação na qual existam duas pessoas, que não compartilham a mesma língua, e um terceiro sujeito, bilíngue profissional, o chamado intérprete interlíngue, que intermedeie esta interação? Como desdobrar esta dupla encenação do intérprete interlíngue, que vive dois papéis diferentes na mesma interlocução? Sobre isto, levanto algumas suposições no próximo trecho.

4. Especulações sobre o ato de linguagem mediado por intérpretes interlíngues

Meu interesse está concentrado nos atos de linguagem realizados em situações de interlocução nas quais os parceiros do ato de linguagem estão, física ou virtualmente 4, em presença um do outro e são intermediados por um terceiro sujeito. Um ato típico de uma interpretação interlíngue: triádico. No quadro 1, traço o esboço, de uma forma sintética, de uma comparação entre os tipos de interlocuções possíveis. Desde a interlocução diádica que é a mais estudada até os dias atuais, passando por minha proposta de representação de interlocução triádica de línguas orais e finalizando com a interpretação de língua de sinais, também triádica, mas de línguas de modalidades diferentes, orais e sinalizadas:

Tipo de Interlocução Diádico Triádico (mediação língua oral ↔ língua oral)  Triádico (mediação língua de sinais ↔ língua de sinais)
Língua mesma diferentes diferentes
Modalidade mesma mesma diferentes
Intermediação nenhuma com intérprete com intérprete
Pistas de Contextualização Linguísticas grande probalidade de percepção 5 média probabilidade de percepção pouca ou quase nenhuma probabilidade de percepção
Pistas de Contextualização Proxémicas grande probabilidade de percepção média probabilidade de percepção média ou pouca probabilidade de percepção
Pistas de Contextualização Prosódicas grande probabilidade de percepção grande ou média probabilidade de percepção quase nenhuma ou nenhuma probabilidade de percepção
Temporalidade consecutiva consecutiva consecutiva ou simultânea (em tempo real)

Quadro 1 - Tipos de Interlocução

Os elementos relacionados em uma interlocução triádica de línguas de modalidades diferentes, mereceriam, por si sós, cada um, um estudo bem mais detalhado. Porém, devido às características conjecturais deste texto, é preciso considerá-lo como uma introdução provocatória sobre esta temática.

Enfocando, especificamente, as interlocuções triádicas, existem aspectos bem específicos que diferenciam uma interlocução mediada por um intérprete de língua de sinais. Assim como os intérpretes de línguas orais, os intérpretes de língua de sinais também estão engajados em uma interlocução triádica com línguas diferentes, porém, de modalidades diferentes. Enquanto uma língua oral (alemão, japonês, banto quéchua) é produzida pela via fonoarticulatória, oral, vocal, e percebida pela via auditiva, as línguas de sinais são produzidas por movimentos do corpo, pela via cinestésica, e percebidos pela visão (no caso dos surdocegos, pelo tato). Em uma interlocução entre duas pessoas que estejam falando qualquer língua oral ou de sinais, seja sua primeira ou segunda língua, não há a necessidade de um intérprete interlíngue, que somente entra em cena quando não há o compartilhamento eficiente da mesma língua.

Apesar de que muitas das reflexões aqui apresentadas podem ser aplicadas, também, aos intérpretes de línguas vocais, vou concentrar meu estudo nos ILS, por ser meu tema principal de investigação.

Além dos ruídos, existem as dicas prosódicas de entonação, emoção, regulação de turnos de fala que estão totalmente fora do alcance das pessoas surdas, mas que precisam ser reguladas pelos ILS. Uma pessoa ouvinte quando está falando e não manifesta a sua intenção de ceder o turno, mas o ILS que está interpretando faz uma pausa, não de turno, mas para organizar o processo de interpretação, pode equivocadamente emitir uma pista para a pessoa surda de que é sua vez de falar. Este é um aspecto que mereceria mais estudos, a troca de turnos de fala, mediada por interpretação de língua de sinais. Por enquanto, contamos somente com interrogações e bom senso para tentarmos amenizar os descompassos causados pela barreira das diferentes modalidades das línguas envolvidas.

Um outro fator, de forte diferenciação, entre línguas orais e línguas sinalizadas, são as pistas de contextualização, que são a “grosso modo, (...) todos os traços linguísticos que contribuem para a sinalização de pressuposições contextuais” (GUMPERZ, 2002, p. 152). Os significados das pistas de contextualização só conseguem ser interpretados se os participantes conhecem suas funções naquela comunidade de fala. Ao iniciar uma atividade de fala, o falante também aciona as pressuposições sociais vinculadas a sua comunidade. Qualquer equívoco na percepção e, consequentemente, interpretação das pistas pode levar a grandes barreiras em uma interlocução, pois a “compreensão cultural é muito mais do que diferenças de valor, ou estereótipos raciais ou étnicos” (op. cit., p. 166). Muitos problemas que são tidos como relativos à cultura podem ser relacionados, na verdade, a diferentes percepções e interpretações de pistas proxêmicas e prosódicas, vistas como de menor importância.

Podemos, portanto, referirmos à comunicação humana como canalizada e restringida por um sistema multinivelar de sinais verbais e não-verbais, que são adquiridos e, ao longo da vida, automaticamente produzidos e intimamente coordenados (GUMPERZ, 2002, p. 166).

Não é difícil imaginar como línguas de modalidades diferentes podem ter pistas contextuais de natureza diferente, imperceptíveis por desconhecedores das especificidades de cada língua, oral e sinalizada. Este fator, sobrecarrega o intérprete de língua de sinais, pois é dele a responsabilidade de interpretar o que está inacessível aos participantes do ato tradutório, por diferenças culturais ou bloqueios fisiológicos.

As pistas de contextualização podem, resumidamente ser descritas como dos seguintes tipos:

  • Linguísticas: mudanças de código, de variedade ou registro, de estilo.
  • Proxêmicas: alteração na postura corporal, inclinações de partes do corpo, proximidade ou afastamento físico.
  • Prosódicas: modificações na entonação, no ritmo, no acento e nas pausas da fala.

As línguas de sinais também possuem traços proxêmicos e prosódicos. Por ser uma língua articulada de uma forma bem visual, principalmente, com os membros superiores 6, alguns movimentos podem ser confundidos com uma aproximação ou afastamento corporal, mas para quem conhece a língua sabe que existem movimentos gramaticalizados e outros não. O mesmo ocorre com a prosódia que é manifestada, basicamente, com expressões não-manuais, faciais. Esquematicamente, no quadro 2, apresento o trabalho de interpretação geral que está a cargo de intérpretes de línguas vocais e de línguas de sinais.

INTÉRPRETES DE LÍNGUAS VOCAIS INTÉRPRETES DE LÍNGUAS DE SINAIS
Aspectos ligados à língua e cultura.

Aspectos ligados à língua e cultura.

Ruídos ambientais significativos.

Pistas de contextualização ligadas à prosódia e ao código linguístico.

Quadro 2 - Informações efetivamente interpretadas pelos intérpretes de línguas vocais e de línguas sinalizadas (PIRES PEREIRA, 2008)

No caso de uma interlocução em que um dos sujeitos fale uma língua vocal, outro uma língua de sinais e em que haja um intérprete interlíngue, as pistas de contextualização serão interpretadas de uma maneira intensa pelo intérprete de língua de sinais. As probabilidades de equívocos são maiores devido ao, provável, desconhecimento entre as pessoas surdas e ouvintes de como se manifestam estas pressuposições em línguas de modalidades diferentes e pela grande quantidade de trabalho de interpretação que fica a cargo do sujeito intermediador. Por exemplo: uma pessoa surda, falante de uma língua sinalizada, pode perceber e interpretar pistas proxêmicas, como a inclinação do corpo ou a direção do olhar, vindas de uma pessoa ouvinte, porém as pistas de caráter linguístico vocal estarão seriamente bloqueadas e a prosódia dificilmente será percebida. O intérprete de língua de sinais é que terá que decidir sobre a relevância de informar, ou não, sobre estas pistas, devido à imediatez que se impõe em interpretações em tempo real.

Esboço, a seguir, de uma forma bem simples, um esquema de um ato de linguagem mediado por um intérprete interlíngue. Estou ciente de sua precariedade, porém não deixa de ser um ponto de partida para futuras conjecturas sobre este tipo de interlocução.

Figura 4 – Primeira hipótese sobre uma interlocução mediada por intérprete de língua de sinais

Na figura 4, acrescento, ao esquema semiolinguístico, o sujeito intermediador (IIL), como o intérprete interlíngue, que retém as funções de sujeito enunciador (EUe), comunicante (EUc), destinatário (TUd) e interpretante (TUi) em uma ordem pouco comum. O sujeito intermediador (IIL) representa um duplo papel, um para o sujeito enunciador e outro para o sujeito destinatário, pois muitos fatores estão em jogo para determinar a sua posição no palco da linguagem: sua relação com as línguas utilizadas, seu papel nas duas (ou mais) comunidades envolvidas, sua própria representação das pessoas a quem está intermediando cultural e linguisticamente, etc. Também forjo as noções de ELExm e ELE°m em que o “m” significa modificado, pois, além dos sujeitos envolvidos, normalmente, em uma interlocução diádica, o assunto sobre o qual se fala passa, obrigatoriamente, pela interpretação de mais um outro sujeito, sofrendo influências e modificações adicionais. Nesta hipótese, o ato de linguagem, diádico, se desdobraria como em um espelho e a responsabilidade pela interpretação estaria, totalmente, centrada na figura dos intérpretes interlíngues. No entanto, existe a probabilidade de que, mesmo com algumas restrições, de caráter fisiológico (a capacidade de ouvir), as pessoas surdas interpretam de uma maneira diferente as pistas emitidas pelos interlocutores.

Uma outra proposta seria um sistema em que todos os sujeitos envolvidos estariam envolvidos na percepção e interpretação, embora em níveis diferentes. Neste esquema, todos os sujeitos, per si, intercambiam interpretações. O ILS é a pessoa privilegiada, que tem maiores condições de interpretação, porém, tanto a pessoa surda, quanto a ouvinte trocam entre si informações de ordem sensorial (visual, cinestésica, etc.) e, em alguns casos, inclusive linguística. Não se pode ignorar que as pessoas surdas também vão colher e interpretar outros tipos de pistas emitidos pelos parceiros ouvintes, seja o ILS, seja a pessoa que não é proficiente em língua de sinais.

Na figura 5, em um circuito interno, delineio uma interlocução na qual todos os sujeitos envolvidos intercambiam seus papéis. Esta forma sistêmica, na qual uma mudança na produção e/ou interpretação, de qualquer um dos parceiros, influencia em todo o ato de linguagem tem grandes possibilidades de mostra-se mais compatível com as trocas linguísticas que ocorrem em interpretações interlíngues.

A linha tracejada (_._._._) representa a fronteira entre o eu comunicante e o eu enunciador e, ao mesmo tempo, entre o tu destinatário e o tu interpretante. Funcionam como as máscaras 7 que utilizamos para projetar e manter uma imagem aos interlocutores. As setas contínuas (_____) encontram-se entre as duas pessoas ouvintes, supostamente, com condições mais igualitárias de interpretação. A seta pontilhada (............), presente entre pessoas ouvintes e surdas, significa os obstáculos existentes para uma percepção mais acurada de pistas emitidas pelos parceiros interlocutores (línguas de modalidades diferentes, diminuição sensorial, etc.).

Figura 5 – Segunda hipótese sobre uma interlocução mediada por intérprete de língua de sinais

Outros modelos podem, ainda, ser propostos. O importante a considerar é a carência de representações para este tipo de interlocução e na qual os intérpretes, de línguas vocais e de línguas de sinais, participam frequentemente em suas vidas profissionais. Não pretendo, com estas hipóteses, pleitear a sua validade, mas, acima de tudo, iniciar estudos que possam ser provocadores de reflexões que venham lançar luz sobre este assunto, fascinante muito pouco explorado.

5. Considerações finais: um palco com as cortinas entreabertas

A interpretação interlíngue não tem motivado muitos estudos acadêmicos, comparativamente à tradução escrita. Talvez por seu caráter evanescente, ou ainda, por um desprestígio histórico da oralidade frente à escrita. Se o foco for a interpretação de línguas de sinais o interesse é ainda menor, pois as línguas sinalizadas têm sido relacionadas, socialmente, a ser deficiente, incapacitado, sendo consideradas toscas substituições das línguas orais. Porém, se a visão for de um sistema linguístico legítimo e completo, não há porquê não estudar a interpretação de línguas de sinais com o mesmo afinco com o qual nos dedicamos a qualquer outra língua oral.

O desconhecimento sobre a atuação dos ILS é uma evidência de nossa marginalização, além da Linguística, dos:

  1. Estudos da Tradução pela carga caritativa que a prestação de serviços de interpretação de língua de sinais, ainda, carrega (“ajudar os surdos”) e pela ignorância do estatuto linguístico da língua de sinais no meio acadêmico;
  2. Estudos Surdos 8, pois é fácil perceber, em um rápido vislumbre nos programas de extensão e pesquisa, que praticamente toda a produção acadêmica concentra-se nas pessoas surdas e nos professores de surdos.

O papel crucial dos ILS como participantes ativos nas intermediações linguísticas e culturais, entre pessoas surdas e ouvintes, não é abordado na profundidade necessária para uma tarefa tão complexa, que requer alto grau de especialização. Neste texto, abordei apenas um dos aspectos que ainda não foi suficientemente estudado: a representação do sujeito, intérprete de língua de sinais, no ato de linguagem.

Os modelos de representação do ato de linguagem, ou comunicativo, concentram-se em abordagens diádicas e lineares, que não dão conta do ato tradutório em que existem três posições: duas pessoas, falantes de línguas diferentes e não-proficientes no idioma do parceiro, e um/a intérprete, proficiente nas duas línguas envolvidas. A situação, já complexa, agrava-se quando línguas de modalidades diferentes (vocal-auditiva e visual-cinestésica, ou espacial) encontram-se.

Tomei, como ponto de referência, os estudos da Semiolinguística, por considerarem os mais diversos signos envolvidos em uma to de linguagem e por dedicarem especial atenção ao estabelecimento dos sujeitos. Existem outros pontos, que não abordei, e que considero de extrema importância, em especial, a concepção de contrato de comunicação (CHARAUDEAU, 1983) aplicado ao ato tradutório que, certamente, retomarei em investigações futuras.

Os modelos de ato de linguagem que propus são de caráter meramente especulativo e pretendo, no decorrer de minhas pesquisas sobre os intérpretes de língua de sinais, empreender uma coleta de dados sobre os processos de enunciação acionados em eventos de interpretação interlíngue para posterior análise mais documentada. Este ensaio é apenas o primeiro passo em uma investigação mais minuciosa que começo a desenvolver.

Se para o ato de linguagem é utilizada a metáfora teatral da encenação, então, no caso da interpretação interlíngue, notadamente, das línguas de sinais, a cortina da invisibilidade caiu e deixou à mostra os intérpretes como sujeitos engajados e ativos nos processo de produção e de interpretação. A máscara, em forma de máquina, caiu. Agora temos que remontar o espetáculo, os papéis estão por serem definidos e as cortinas ainda nem se abriram totalmente.

Notas

1 Utilizarei a expressão intérprete/interpretação interlíngües para marcar de que se trata de uma retextualização de uma língua (língua de partida) para outra (língua de chegada).
2 Theoretical Issues in Sign Language Research 9 (TISLR 9), UFSC, Florianópolis, SC.
3 Todas as citações que não estão originalmente, ou traduzidas, em Português, são traduções livres minhas.
4 Devido aos avanços tecnológicos, acrescento à idéia original de Charaudeau (2005, p.24), a virtualidade. As interlocuções, de troca imediata, por meio eletrônico são uma realidade em videoconferências, webcams e, até mesmo, por meio de personagens/avatares, em jogos como o Second Life.
5 As chances de percepção e interpretação aumentam se existe um compartilhamento de modelos de domínio de prática linguageira, ou seja, “relações de forças simbólicas e, mais ou menos, hierarquizadas e institucionalizadas (CHARAUDEAU, 2004, p. 15)” entre os sujeitos interlocutores.
6 Ao contrário das línguas orais que se articulam bem mais discretamente no interior do aparelho fonoarticulatório e que só parte dos movimentos é visualizado, principalmente, na face.
7 “...as palavras pessoa e personagem têm como base a palavra persona, máscara em grego” (CEIA, 2005).
8 De acordo com Skliar (1998), os Estudos Surdos são uma área de pesquisas e de encaminhamentos políticos que, através de um conjunto de concepções lingüísticas, culturais, comunitárias e de identidades, redefine os discursos sobre as pessoas surdas com uma visão não-clínica, mas sim sócio-cultural e antropológica da surdez. As questões teóricas destes estudos estão concentradas nas comunidades surdas, nas escolas, nos intérpretes de língua de sinais e na formação de professores ouvintes de surdos e de professores surdos.

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