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Danielle Sousa
Danielle Sousa
Professora do Centro de Ensino e Apoio a Pessoa com Surdez
Interpretação Libras/Português: Uma Análise da Atuação dos Tradutores/Intérpretes de Libras de São Luís
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Publicado em 2010
Revista Littera, nº 1, v. 1, p.60-66
Danielle Sousa
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Resumo

Aborda-se a profissão de tradutor/intérprete de língua de sinais, que exige um conhecimento específico de tradução/interpretação das línguas Libras/Português no processo de tradução/interpretação, das técnicas e modalidades de interpretação. Apresentam-se as dificuldades enfrentadas por este profissional em relação à execução da modalidade Libras/Português. Apontam-se contribuições em relação a este procedimento, uma vez que foi relatado pelos tradutores/intérpretes de língua de sinais de São Luís como um processo de difícil realização. A análise do artigo baseia-se em pesquisas empírica, bibliográficas e em observações.

Introdução

O trabalho do tradutor/intérprete de língua brasileira de sinais (Libras) e língua portuguesa em diferentes áreas se apresenta sempre como um desafio. Este profissional precisa cumprir diferentes exigências que são apresentadas a ele, como o domínio das línguas que traduz/interpreta, conhecimento sobre as técnicas, modalidades de interpretação, história e cultura surda e contato com a comunidade surda. Objetiva-se analisar os dados apontados pelos intérpretes de São Luís em relação à modalidade de interpretação Libras/Português (língua brasileira de sinais para a língua portuguesa), demonstrando pontos que podem contribuir neste tipo de interpretação. Além deste aspecto, o artigo apresenta, de maneira sucinta, a constituição do tradutor/intérprete de Libras no Brasil e em São Luís.

O tradutor/intérprete de língua de sinais no Brasil

Em vários países existem tradutores/intérpretes de língua de sinais, e cada país traz a história da organização da atuação deste profissional. No Brasil, o exercício da atividade do tradutor/intérprete teve início no campo religioso por volta dos anos 80. De acordo com Quadros (2007), em 1988 foi realizado o I Encontro Nacional de Intérpretes de Língua de Sinais, organizado pela FENEIS, momento que proporcionou o encontro de vários tradutores/intérpretes do Brasil para discussões e avaliação sobre a ética deste profissional. Em 1992, aconteceu o II Encontro Nacional, ocasião para discussões e votação do regimento interno do Departamento Nacional de Intérpretes.

Nos anos seguintes, foram realizados Encontros Estaduais e Regionais, e o progresso em relação à profissão continuou com o estabelecimento de unidades de intérpretes vinculadas aos escritórios regionais da FENEIS. Em 2002, esta Federação inaugurou escritórios em alguns estados - São Paulo, Porto Alegre, Belo Horizonte, Teófilo Otoni-MG, Brasília, Recife -, sendo a matriz no Rio de Janeiro. Além dos pontos supracitados, as reivindicações dos surdos e os posicionamentos em relação à cidadania deles foram aspectos importantes que proporcionaram a ampliação da profissionalização do intérprete de língua de sinais.

Um acontecimento que trouxe mudanças na formação histórica e profissional do tradutor/intérprete de Libras foi o reconhecimento da língua brasileira de sinais como língua oficial das comunidades surdas do Brasil. A partir desta declaração legal, foi assegurado aos surdos o acesso à língua como direito lingüístico, e, como conseqüência, houve a aceitabilidade e entendimento da obrigatoriedade por parte de diferentes instituições, além de firmar direito a acessibilidade por meio do profissional tradutor/intérprete de língua brasileira de sinais. A lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002 possibilitou garantias aos surdos, bem como representou um avanço na formação e na aceitação deste profissional no Brasil, trazendo várias oportunidades no mercado de trabalho.

O tradutor/intérprete de língua de sinais de São Luís

A formação do tradutor/intérprete de Libras em São Luís teve início no âmbito religioso, mais precisamente nas igrejas evangélicas. Em 1985, um grupo de missionários Batista americano veio para São Luís e dentre eles estava a missionária Lois Broughton, que ministrou um curso de mímica para um grupo de jovens da Igreja Batista Getsêmani.

Muitas pessoas participaram do curso oferecido pela missionária; dentre eles, destaca-se Valéria Cardoso Ewerton, que deu continuidade aos trabalhos com surdos e com a língua de sinais em São Luís. Valéria foi multiplicadora do ensino de Broughton, desenvolvendo trabalhos de ensino de Libras, de evangelização de surdos, e de interpretação, tanto nas igrejas como em encontros que requisitavam profissionais com essa habilidade. Em 1993, Valéria Ewerton ministra o primeiro curso de língua de sinais para professores da Rede Pública Estadual.

Em 1998, quando quatro surdos passaram da classe especial para a 5ª série do ensino fundamental do Centro de Ensino Fundamental e Médio Governador Edison Lobão (CEGEL), dá-se início a atuação deste profissional no campo educacional em São Luís, tendo como primeira intérprete Irene Santos Cabral1. Irene, que era professora de surdos da classe especial por possuir fluência em língua de sinais, passou a desenvolver trabalhos de interpretação na escola, acompanhando os alunos até o término do ensino fundamental.

Nos anos 1999 e 2000, outras professoras deixaram de atuar nas classes especiais de surdos para serem intérpretes também na escola da rede estadual CEGEL, dentre elas: Gracy Mary Conceição Monteiro e Maria Tereza Duarte Cardoso. Em virtude do crescimento do número de alunos surdos na escola, houve a necessidade de ampliação do número de intérpretes. Assim, em 2001 a Secretaria de Educação do Estado do Maranhão contratou pessoas fluentes em Libras oriundas das igrejas, e, no interstício de 2001 a 2009, estes profissionais atuaram por meio de contratos temporários.

Em 2009, mediante os esforços dos profissionais e de instituições como o Centro de Ensino de Apoio à Pessoa com Surdez (CAS) e a Associação dos Profissionais Tradutores/Intérpretes de Libras (APILMA), foram criadas as funções de Professor Instrutor de Libras e Professor Tradutor/Intérprete de Libras na carreira do magistério estadual. Assim, em 2009, por ocasião da realização de concurso público, foram ofertadas 35 vagas para Tradutor/Intérprete (nível superior) e 100 vagas (nível médio).

Atualmente, em São Luís, a rede pública estadual conta com um grupo de 67 tradutores/intérpretes de língua de sinais concursados. Mas, apesar deste número, a necessidade ainda é perceptível. A Secretaria Municipal de Educação e a Universidade Federal do Maranhão (UFMA) também já realizaram concurso público para esta categoria, e, em algumas faculdades privadas do Maranhão, o intérprete já atua em sala de aula.

Modalidade de interpretação: Libras/Português (língua brasileira de sinais para português oral)

Quadros (2007, p.27) define o intérprete de língua de sinais da seguinte maneira: “É o profissional que domina a língua de sinais e a língua falada do país e que é qualificado para desempenhar a função de intérprete. No Brasil, o intérprete deve dominar a língua brasileira de sinais e a língua portuguesa.”

No conceito, Quadros sinaliza a necessidade do profissional possuir competência comunicativa em ambas as línguas. Sistematizado por Canale e Swain, sendo modificado posteriormente por Canale, o conceito de competência comunicativa possui as seguintes competências subjacentes:

A competência gramatical ou lingüística se atém ao código lingüístico das estruturas e regras de pronúncia onde o objetivo é o da acuidade na expressão e compreensão. A competência sociolingüística considera o papel dos falantes no contexto da situação e a sua escolha de registro e estilo. A competência discursiva considera a questão da coesão e da coerência relevantes no determinado contexto. E a competência estratégica considera que não há falantes e ouvintes ideais, sendo necessário, portanto que se faça uso de estratégias de comunicações verbais ou não-verbais para se compensar as quebras de comunicação (NEVES, 1998, p.73, grito nosso).

Ao tradutor/intérprete de Libras, ser competente comunicativamente não é o suficiente para desenvolver uma interpretação satisfatória, uma vez que o profissional precisa possuir outra competência, a tradutória, como afirma Hurtado Albir:

Embora qualquer falante bilíngüe possua competência comunicativa nas línguas que domina, nem todo bilingue possui competência tradutória. A competência tradutória é um conhecimento especializado, integrado por um conjunto de conhecimentos e habilidades, que singulariza o tradutor e o diferencia de outros falantes bilíngües não tradutores (HURTADO ALBIR, 2005, p.19).

As competências, comunicativa e tradutória devem fazer parte do perfil do tradutor/intérprete de Libras. A ausência dessas características pode comprometer o desenvolvimento do trabalho desses profissionais, podendo ocasionar dificuldades na atividade de interpretação de línguas. Além desses requisitos, é relevante conhecer o funcionamento das línguas que interpreta e o campo cultural e social do discurso a ser interpretado, como afirma Lacerda:

(...) o trabalho de interpretação não pode ser visto, apenas, como um trabalho lingüístico. É necessário que se considere a esfera cultural e social na qual o discurso está sendo enunciado, sendo, portanto, fundamental, mais do que conhecer a gramática da língua, conhecer o funcionamento da mesma, dos diferentes usos da linguagem nas diferentes esferas de atividade humana. Interpretar envolve conhecimento de mundo, que mobilizado pela cadeia enunciativa, contribui para a compreensão do que foi dito e em como dizer na língua alvo; saber perceber os sentidos (múltiplos) expressos nos discursos (LACERDA, 2009, p. 21).

Nessa perspectiva, considera-se relevante analisar alguns relatos de experiência de tradutores/intérpretes de Libras acerca da interpretação Libras/Língua Portuguesa, a fim de perceber a relação desses profissionais com as competências e conhecer outros entraves.

Na fala do tradutor/intérprete (A), a dificuldade é evidenciada quando diz: “Sinto insegurança no momento da interpretação sinal/voz, pois muitas vezes não está claro no texto do surdo qual o tempo verbal a que ele se refere, sendo necessário anteriormente perguntar ao surdo o contexto do que vai ser falado. A falta de prática nesta modalidade também é um entrave.”

Já para o tradutor/intérprete (B), expressa que: “Em minha opinião, as duas modalidades são difíceis e o que faz a sinal/voz ser mais trabalhosa é a ausência de exigência do público surdo neste tipo de modalidade e isto se deve a falta de proficiência na Libras por parte de alguns surdos.”

Observa-se que o tradutor/intérprete (C) menciona que: “Na interpretação Libras/Português é preciso atenção, concentração, fluência nas duas línguas, convivência com o surdo, perceber no momento da interpretação as expressões faciais, as marcações no discurso, para que na língua portuguesa se faça as pontuações corretas. Observar se o discurso construído é formal ou informal. Acredito que os profissionais que sentem mais dificuldade na realização desta modalidade são os que ainda não possuem fluência e experiência.”

Diante das opiniões, as dificuldades existentes neste tipo de interpretação, acontecem pela falta de prática, experiência na área, fluência na língua de sinais e clareza no texto construído pelo surdo. Este último item acontece devido à ausência de proficiência lingüística por parte de alguns surdos, e o intérprete ao se confrontar com tal situação, sente muita dificuldade de interpretar. É válido ressaltar que existem profissionais que dominam as línguas que interpretam, possuem proficiência e competência tradutória, mas ao interpretar surdos que não dominam a língua de sinais, não realizam de modo satisfatório a interpretação.

Outro dado relevante é que, muitos intérpretes começam atuar sem conhecimento sobre as técnicas e modalidades de interpretação, principalmente sem proficiência na língua de sinais, comprometendo a sua atuação.

A necessidade de formação continuada, convivência com a comunidade surda, para que perceba a constante evolução da língua e para que o profissional se desenvolva lingüisticamente e adquira segurança no exercício da sua atividade são aspectos que cooperam na construção e aprimoramento do perfil do tradutor/intérprete de Libras.

Considerações finais

Inúmeras são as exigências postas para o intérprete de língua de sinais. De acordo com Pires e Nobre (2005) existem condições básicas para a atuação deste profissional, tais requisitos são o contato com a comunidade surda e o conhecimento da Libras e da língua portuguesa. Além destes, o intérprete precisa conhecer e aplicar as técnicas de tradução e interpretação, ter conhecimento acerca da história, cultura e termos próprios utilizados na comunidade surda.

O artigo 17 do Decreto nº 5.626/05 afirma que a formação deste profissional deve ser realizada através de curso superior de tradução e interpretação, com habilitação Libras/língua portuguesa. São Luís ainda não possui universidades ou faculdades que disponibilizem cursos para tal formação. Sendo assim, a formação deste profissional em São Luís se constitui através da atividade prática, conhecimento empírico e cursos de formação continuada.

Apesar da ausência de cursos de formação superior, o intérprete de língua de sinais deve sempre ir em busca do profundo conhecimento das línguas envolvidas no processo tradutório. Leituras, pesquisas, prática da escrita, princípios da oratória, impostação vocal, técnicas de interpretação e tradução, aspectos culturais, situacionais e bagagem cognitiva, são aspectos que devem ser considerados relevantes na formação e na atuação deste profissional.

Bibliografia

BRASIL. Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005. Regulamenta a Lei no 10.436, de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais – Libras. Brasília, 22 dez. 2005.

_________. Lei nº 10.436/02 Dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais – Libras - e dá outras providências. Brasília, 24 abr. 2002.

HURTADO ALBIR, Amparo. A Aquisição da Competência Tradutória: aspectos teóricos e didáticos. In: PAGANO, Adriana; MAGALHÃES, Célia; ALVES, Fábio (orgs.). Competência em Tradução: cognição e discurso. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.

LACERDA, Cristina Broglia Feitosa de. Intérprete de Libras: em atuação na educação infantil e no ensino fundamental. Porto Alegre: Mediação/FAPESP, 2009.

NEVES, Maralice de Souza. Os mitos das abordagens tradicionais e estruturais ainda interferem na prática em sala de aula. In: PAIVA, Vera Lúcia Menezes de. (org.) Ensino de Língua Inglesa: reflexões e práticas. Departamento de Letras Anglo Germânicas-UFMG, 1998.

PIRES, Cleide Lovatoo; NOBRE, Maria Alzira. Uma investigação sobre o processo de interpretação em língua de sinais. In: THOMA, Adriana da Silva; LOPES, Maura Corcini. (orgs.). A invenção da surdez: cultura, alteridade, identidade e diferença no campo da educação. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2005.

QUADROS, Ronice Müller de. O tradutor e intérprete de língua brasileira de sinais e língua portuguesa. Secretaria de Educação Especial; Brasília: MEC; SEESP, 2007.

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