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Neuma Chaveiro
Neuma Chaveiro
Fonoaudióloga
Metodologia de tradução da Organização Mundial de Saúde (OMS) para desenvolvimento de instrumentos de avaliação de qualidade de vida nas línguas orais e na libras
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Publicado em 2012
III Congresso Brasileiro de Pesquisas em Tradução e Interpretação de Língua Brasileira de Sinais e Língua Portuguesa. Florianópolis-SC: UFSC
Neuma Chaveiro
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Resumo

Introdução: A avaliação da qualidade de vida da população surda é limitada pelas dificuldades de comunicação na língua oral e escrita, daí a necessidade de desenvolver instrumentos confiáveis em língua de sinais com rigor metodológico que inclua as características particulares do povo surdo.
Objetivo: traduzir para Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) os instrumentos da Organização Mundial de Saúde (OMS): WHOQOL-BREF (World Health Organization Quality of Life – Bref) e WHOQOL-DIS (World Health Organization Quality of Life – Disability) para avaliar a qualidade de vida da população surda brasileira.
Métodos: Estudo transversal e exploratório, delineado com base na Pesquisa Metodológica. Utilizou-se a metodologia proposta pela OMS, adaptada para população surda, e em acordo com os critérios estabelecidos com o Grupo WHOQOL do Brasil a execução do projeto foi dividida em 13 etapas: 1. criação do sinal QUALIDADE DE VIDA; 2. desenvolvimento das escalas de respostas em LIBRAS; 3. tradução por um grupo bilíngue; 4. versão reconciliadora; 5. primeira retrotradução; 6. produção da versão em LIBRAS a ser disponibilizada aos grupos focais; 7. realização dos grupos focais; 8. revisão por um grupo monolíngue; 9. revisão pelo grupo bilíngue; 10. análise sintática/ semântica e segunda retrotradução; 11. reavaliação da retrotradução pelo grupo bilíngue; 12. filmagem em estúdio da versão final para o software; 13. Desenvolvimento do software dos instrumentos WHOQOL-BREF e WHOQOL-DIS na versão em LIBRAS.
Resultados: Ao mensurar a qualidade de vida dos surdos, é imprescindível que se considerem as características próprias do povo surdo, incluindo aspectos culturais e linguísticos, na construção dos instrumentos de avaliação em saúde, caso contrário é impossível obter dados confiáveis. Para os surdos que se comunicam pela língua de sinais, a qualidade de vida só pode ser efetivamente avaliada por instrumentos traduzidos e adaptados a essa população. Características peculiares da cultura do povo surdo apontaram a necessidade de adaptações na metodologia de aplicação de grupos focais quando compostos por pessoas surdas. Ao final foi possível construir um software do WHOQOL-BREF e WHOQOL-DIS em LIBRAS.
Conclusão: O WHOQOL-BREF e o WHOQOL-DIS em LIBRAS possibilitarão que os surdos, de maneira autônoma, se expressem no que respeita a qualidade de vida, o que permitirá investigar com mais precisão questões de qualidade de vida das pessoas surdas. Além disso, farão parte dos instrumentos de avaliação de qualidade de vida da Organização Mundial de Saúde.

Introdução

O construto qualidade de vida tem uma carga semântica distinta para diferentes pessoas e diversas áreas de aplicação. A partir da década de 1990, a OMS, formou um grupo multicêntrico, de vários países, o WHOQOL-GROUP, com o objetivo de definir o conceito, criar instrumentos e conduzir estudos sobre as medidas de Qualidade de Vida Relacionada à Saúde (QVRS), tanto numa perspectiva individual como social, com um caráter genuinamente internacional (FLECK et al., 1999).

A definição de qualidade de vida proposta pela OMS tem sido referenciada em vários estudos. Nessa concepção, qualidade de vida é: “a percepção do indivíduo de sua posição na vida, no contexto de sua cultura e dos sistemas de valores em que vive e em relação a suas expectativas, seus padrões e suas preocupações” (FLECK, 2008).

Atualmente, os instrumentos de aferição da QVRS, são traduzidos e validados em vários idiomas, com o objetivo de agregar os valores socio-culturais e linguísticos de um povo (FLECK, 2008). Por que não considerar esses mesmos critérios em relação ao povo surdo? Como fazer uma avaliação fidedigna da qualidade de vida das pessoas surdas que usam a língua de sinais, com instrumentos em uma língua que eles não dominam? Seria prudente utilizar a versão de um questionário em português, fazendo apenas uma tradução simultânea para LIBRAS? Isso poderia comprometer os resultados da pesquisa? Considerando que a LIBRAS é reconhecida legalmente como língua, pela Lei Federal nº 10.436/02 (BRASIL, 2002), não seria necessário traduzir e validar instrumentos de medida de qualidade de vida para esse idioma?

Os instrumentos de avaliação de qualidade de vida da OMS, World Health Organization Quality of Life (WHOQOL), estão disponíveis em mais de vinte idiomas (FLECK, 2000), mas ainda não se tem estudos com a tradução e validação desses instrumentos para LIBRAS. Poucas pesquisas investigaram a qualidade de vida do povo surdo que se comunica pela língua de sinais. E a maior parte desses estudos tiveram como objetivo investigar a qualidade de vida relacionada ao uso de aparelho auditivo e de implante coclear, numa perspectiva de valorização da língua oral.

O Grupo WHOQOL, propõe que seus instrumentos de aferição da qualidade de vida sejam traduzidos para diversas línguas e que apresentem bons níveis de equivalência para que em seu uso transcultural os resultados reflitam com fidedignidade a real qualidade de vida de uma determinada comunidade, assim é imprescindível que a tradução dos instrumentos de avaliação da qualidade de vida da OMS, para as línguas de sinais, siga o rigor metodológico das outras línguas e que inclua as características particulares do povo surdo.

Objectivo

Traduzir para LIBRAS os instrumentos da OMS: WHOQOL-BREF (World Health Organization Quality of Life – Bref) e WHOQOL-DIS (World Health Organization Quality of Life – Disability) para avaliar a qualidade de vida da população surda brasileira.

Métodos

O Projeto WHOQOL-LIBRAS foi iniciado após obter sua aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa Médica Humana e Animal do Hospital das Clínicas da UFG sob o nº 003/08, atendendo, assim, à Resolução nº 196/96 da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP).

Um dos grandes motivos do desenvolvimento do projeto WHOQOL-LIBRAS foi a relevância de se avaliar o impacto da surdez na qualidade de vida das pessoas surdas que se comunicam pela língua de sinais, valorizando os aspectos culturais e linguísticos da comunidade surda.

Para o desenvolvimento desse projeto, estabeleceu-se parceria entre a Universidade Federal de Goiás (UFG), a Organização Mundial de Saúde (OMS) e o Grupo WHOQOL do Brasil na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Metodologia da oms para o desenvolvimento dos instrumentos de avaliação da qualidade de vida – WHOQOL

O rigor metodológico da OMS, na construção e validação de instrumentos de avaliação da qualidade de vida, mostra que é possível obter valores psicométricos com índices satisfatórios em seus instrumentos desenvolvidos nos projetos multicêntricos. Assim, assegura-se que os resultados das aplicações desses questionários são válidos e consistentes e retratam fielmente a população investigada.

O desenvolvimento do WHOQOL-100 foi realizado em 15 centros, simultaneamente, sediados em 14 países, com as seguintes etapas: estabelecimento do conceito, estudo-piloto qualitativo, desenvolvimento de um teste-piloto e um teste de campo (FLECK, 2000).

Depois da elaboração do WHOQOL-100, foram incluídos novos centros para testar o instrumento, e o Brasil esteve presente entre os países selecionados. A metodologia estabelecida para os novos centros foi a seguinte: tradução do instrumento, preparação do teste-piloto, desenvolvimento das escalas de respostas do tipo Likert; e a aplicação e validação do piloto (FLECK et al., 1999). Nos outros módulos do WHOQOL, o Centro Brasileiro participou de todo o processo de desenvolvimento dos instrumentos.

A OMS tem uma metodologia própria para tradução dos instrumentos de avaliação de qualidade de vida, apresentada no quadro 1.

Quadro 1 – Metodologia de tradução da OMS

1. Tradução feita por tradutor com conhecimento detalhado do instrumento.

2. Revisão da tradução por um grupo bilíngue composto por entrevistadores, clínicos e antropólogos.

3. Revisão por um grupo monolíngue representativo da população do país onde o instrumento vai ser aplicado.

4. Revisão pelo grupo bilíngue, para incorporação das sugestões do grupo monolíngue.

5. Retrotradução por tradução independente.

6. Reavaliação da retrotradução pelo grupo bilíngue. Qualquer diferença significativa é revisada de maneira interativa.

Fonte: CHACHAMOVICH, E.; FLECK, M.P.A. Desenvolvimento do WHOQOL-100. In: FLECK, M.P.A. A avaliação de qualidade de vida – Guia para profissionais da saúde (2008).

Metodologia para construção da versão em libras do WHOQOL-BREF e do WHOQOL-DIS

As etapas utilizadas seguiram a metodologia proposta pela OMS, adaptada para população surda. Em acordo com os critérios estabelecidos com o Centro Brasileiro de Qualidade de Vida da OMS (WHOQOL – Brasil), a execução do projeto foi dividida em 13 etapas. As etapas de 3 a 13 foram executadas de modo sequencial, não sendo possível desenvolvê-las ao mesmo tempo. Portanto, para se iniciar uma etapa, era necessário ter concluído a anterior. Essa ordem não se aplicou nas etapas 1 e 2, independentes.

Para melhor visualizar a proposta da OMS na construção de seus instrumentos em línguas orais e em língua de sinais, foi elaborado um quadro comparativo (quadro 2), ressaltando que, na execução das etapas em línguas de sinais, foi necessário fazer as adequações pertinentes a essa língua, em decorrência de sua modalidade viso-espacial de produção.

Quadro 2 – Etapas da OMS para desenvolvimento de instrumentos de avaliação de qualidade de vida nas línguas orais e as correspondentes em LIBRAS.

ETAPAS PARA LIBRAS ETAPAS PARA LÍNGUAS ORAIS
1. Criação do sinal QUALIDADE DE VIDA 1. Clarificação do conceito de qualidade de vida
2. Desenvolvimento das escalas de respostas em LIBRAS 2. Desenvolvimento das escalas de respostas em língua oral
3. Tradução por um grupo bilíngue 3. Tradução por um tradutor
4. Versão reconciliadora 4. Revisão da tradução por um grupo bilíngue
5. Primeira retrotradução 5. Etapa inexistente
6. Produção da versão em LIBRAS a ser disponibilizada aos grupos focais 6. Etapa inexistente
7. Realização dos grupos focais 7. Realização dos grupos focais
8. Revisão por um grupo monolíngue 8. Etapa realizada nos grupos focais
9. Revisão pelo grupo bilíngue 9. Revisão pelo grupo bilíngue
10. Análise sintática/ semântica e segunda retrotradução 10. Sem análise/sintática e semântica. Retrotradução por tradutor independente
11. Reavaliação da retrotradução pelo grupo bilíngüe 11. Reavaliação da retrotradução pelo grupo bilíngue
12. Filmagem em estúdio da versão final para o software 12. Etapa inexistente
13. Desenvolvimento do software na versão em LIBRAS dos instrumentos WHOQOL-BREF e WHOQOL-DIS 13. Etapa inexistente

Resultado e Discussão

A tradução dos instrumentos WHOQOL-BREF e WHOQOL-DIS para LIBRAS, além de compor os instrumentos de avaliação de qualidade de vida da OMS, possibilitará investigar e compreender as várias questões que envolvem a qualidade de vida relacionada à saúde das pessoas surdas, tornado-se uma ferramenta importante nas avaliações clínicas, auxiliando por exemplo, na eficácia de um tratamento ou na escolha de uma orientação a ser seguida, na formação de uma pessoa surda, se oralista ou que priorize a língua de sinais na vida do surdo.

Para avaliar a QVRS das pessoas surdas que se comunicam pela língua de sinais, são necessários instrumentos padronizados e que contemplem as características culturais dos surdos, com possibilidades reais de sua utilização. Isso pressupõe o aceite da concepção socio-antropológica da surdez, considerando-a não como uma deficiência a ser curada, mas principalmente como uma cultura visual, que se traduz no uso da língua de sinais.

Com o desenvolvimento da versão em LIBRAS dos instrumentos WHOQOL-BREF e WHOQOL-DIS, verificou-se que a metodologia proposta pela OMS é muito eficiente, mas foram necessárias adaptações para atingir os objetivos propostos no projeto WHOQOL-LIBRAS. Foi possível estabelecer um padrão para tradução e adaptação de instrumentos em língua de sinais:

  • é imprescindível que na equipe que coordenará o projeto de tradução de línguas orais para línguas sinalizadas, tenha a participação de pessoas fluentes em LIBRAS;
  • a formação do grupo bilíngue que fará a primeira tradução de uma língua oral para uma língua sinalizada, deve ser criteriosa, assegurando que os componentes, além de serem bilíngues, tenham a vivência cultural da comunidade surda, resguardando assim uma tradução que contemple os valores culturais e linguísticos dessa população;
  • antes de fazer a retrotradução, deve-se produzir uma versão reconciliadora, com base na tradução do grupo bilíngue;
  • durante a retrotradução, não se deve apenas fazer a transcrição para o idioma original, mas também realizar uma análise linguística dos níveis sintáticos e semânticos de cada item;
  • deve-se ter cuidado na escolha das pessoas surdas que farão as sinalizações: é necessário que elas tenham uma boa fluência na língua de sinais, produzindo os sinais de modo claro, com uso adequado do espaço de sinalização e com boa expressão facial;
  • todo o registro do desenvolvimento de um instrumento em língua sinalizada deve ser filmado, para garantir uma notação fiel dos dados.

Conclusão

A qualidade de vida do povo surdo será efetivamente avaliada com instrumentos traduzidos e adaptados para essa população. O WHOQOL-BREF e o WHOQOL-DIS em LIBRAS possibilitarão que os surdos, de maneira autônoma, se expressem no que respeita a qualidade de vida, o que permitirá investigar com mais precisão questões de qualidade de vida das pessoas surdas. Além disso, farão parte dos instrumentos de avaliação de qualidade de vida da Organização Mundial de Saúde.

Bibliografia

BRASIL. Lei Federal 10.436, de 24 de abril de 2002. Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS, 2002.

CHACHAMOVICH, E.; FLECK, M.P.A. Desenvolvimento do WHOQOL-100. In: FLECK, M.P.A. A avaliação de qualidade de vida – Guia para profissionais da saúde. Porto Alegre: Artmed; 2008. p. 29-39.

FLECK, M.P.A. O instrumento de avaliação de qualidade de vida da Organização Mundial de Saúde (WHOQOL-100): características e perspectivas. Ciência e Saúde Coletiva. v. 05, n. 001, p. 33-38, 2000.

FLECK, M.P.A.; LOUSADA, S.; XAVIER, M.; CHACHAMOVICH, E.; VIEIRA, G.; SANTOS, L.; PINZON, V. Desenvolvimento da versão em português do instrumento de avaliação de qualidade de vida da OMS (WHOQOL-100). Revista Brasileira de Psiquiatria. v. 21, n. 1, p. 19-28, 1999.

FLECK, M.P.A.; LOUSADA, S.; XAVIER, M.; CHACHAMOVICH, E.; VIEIRA, G.; SANTOS, L.; PINZON, V. Aplicação da versão em português do instrumento abreviado de avaliação da qualidade de vida “WHOQOL-BREF”. Revista de Saúde Pública. v. 24, n. 2, p. 178-183, 2000.

WHOQOL GROUP. The World Health Organization Quality of life Assessment: position paper from the World Health Organization. Social Science and Medicine. v.41, p. 1403-1409, 1995.

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