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Angela Russo
Angela Russo
Pedagoga Educação Infantil
O intérprete de Língua de Sinais no Ensino Superior e na Pós-Graduação
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Publicado em 2006
II Encontro Nacional de Línguas e Literatura, Novo Hamburgo
Angela Russo
Maria Cristina Pires Pereira
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Resumo

O presente relato de experiência aborda as vivências como intérpretes de língua de sinais no ensino superior e pós-graduação em seus aspectos envolvendo a educação inclusiva. Questões como a preparação dos docentes para trabalharem com as especificidades de ter uma pessoa surda e o intérprete de língua de sinais em aula, a preparação e a atuação dos próprios intérpretes para a complexa tarefa de intermediação lingüística e cultural no meio acadêmico, os embates institucionais e burocráticos vividos no cotidiano do trabalho do intérprete de língua de sinais, entre outros, serão apresentadas a fim de que possamos refletir sobre os possíveis caminhos para qualificar a atuação desse profissional nesse nível de ensino.

Contextualizando a atuação do profissional intérprete de língua de sinais

Vemos, cada vez mais, as pessoas surdas entrando na graduação e pós-graduação e este fenômeno não está restrito somente ao Brasil. Lang (2002, p.267) confirma esta tendência afirmando que “o número de estudantes surdos cursando faculdade e universidade aumentou dramaticamente nas últimas duas décadas 3” e cita estatísticas internacionais apontando que, em 1999, vinte e cinco mil estudantes com algum tipo de perda auditiva estavam matriculados no ensino superior nos Estados Unidos, embora não identificados dentre esses quem precisava de interpretação de língua de sinais. Por outro lado, em países como a China, com uma estimativa de vinte e um milhões de pessoas surdas e deficientes auditivas, no ano de 2001, somente umas setecentas tinham condições de estudar em faculdades ou universidades com programas especiais. Na Alemanha, um levantamento, feito em 1991, indicou que com estudantes surdos no ensino superior apontavam a necessidade serviços de apoio para sua vida acadêmica, tais como: anotadores, tutores e os intérpretes de língua de sinais - ILS.

Com este crescimento, aumenta também a demanda por profissionais que intermediam as interações lingüísticas entre os surdos falantes da língua de sinais brasileira - Libras com os ouvintes não proficientes nessa língua: ILS.

Em termos legais, podemos destacar que já há um início de amparo legal no que diz respeito à atuação do profissional ILS, dando destaque para o Decreto Federal 5626 de 22 de dezembro de 2005 em que regulamenta as leis 10.436/2002 e 10.098/2000, lei da acessibilidade e lei que oficializa a língua de sinais brasileira, respectivamente. No Decreto 5626/2005, em seu capítulo V, é apresentado as condutas a serem adotadas acerca da formação do tradutor e intérprete de libras – língua portuguesa dizendo que a mesma “deve efetivar-se por meio de curso superior de tradução e interpretação, com habilitação em Libras – Língua Portuguesa”, dando um prazo de 10 anos para as instituições de ensino de adequarem. Diz também que caberá ao MEC promover programas específicos para a criação destes cursos de formação graduação em Tradução e Interpretação. Outra garantida nesta legislação é que as escolas deverão contar com a presença do profissional ILS.

Apesar da importância desta legislação, a mesma não esclarece quais aspectos deverão ser levados em consideração nos cursos de formação para ILS, que conteúdos, as especificidades de cada área de atuação deste profissional.

Assim sendo, devemos voltar a nossa atenção para os aspectos de qualificação dos ILS que trabalham no ensino superior, como é notado por Marschark (2005, p. 39) existe “uma séria falta de intérpretes de língua de sinais qualificados e muitos intérpretes que estão atuando em ambientes educacionais são pouco ou muito pouco qualificados” e, que em uma pesquisa efetuada nos Estados Unidos, referência na formação e atuação de ILS, “menos da metade dos intérpretes avaliados teve um desempenho minimamente aceitável para a interpretação educacional”.

Cabe lembrar que a realidade vivenciada pelos intérpretes brasileiros que atuam no nível superior e pós-graduação é marcada por estes mesmos aspectos levantados por Marschark (2005). A grande maioria aprimora sua prática a partir das vivências cotidianas de atuação, em um processo de constante adequação e re-adequação da interpretação, buscando respaldo lingüístico na busca de novos sinais com os próprios clientes – os surdos, estudando qual equivalente da outra língua é mais apropriado para cada situação, compartilhando as experiências com outros intérpretes. Neste sentido é que refletimos sobre o caminho que o nosso país ainda deve percorrer na busca de uma melhor qualificação para estes profissionais. 

Impasses lingüísticos

Um dos maiores obstáculos na interpretação de língua de sinais, em todos os níveis de ensino e também em outros contextos, é a falta de conhecimento de como se processa uma interação lingüística em língua de sinais, suas diferenças quanto a uma língua oral e o caráter de segunda língua que a língua portuguesa assume para a maioria dos estudantes surdos.

A grande diferença é devido à modalidade de percepção que nas línguas sinalizadas é estritamente visual e que nas línguas orais pode ser simultaneamente visual e auditiva. Por exemplo: um estudante ouvinte pode ler e escutar a voz do professor fazendo comentários sobre esse texto ao mesmo tempo, no entanto um aluno surdo vai ter que olhar para a sinalização do ILS e deixar o texto para ler depois. O mesmo acontece se o professor está ditando alguma coisa, ou o estudante surdo opta por ver a sinalização ou o ILS tem que atuar como anotador escrevendo o que está sendo falado, sendo que a pessoa surda só terá acesso a este texto depois de todo ele ditado. Esse último caso é complicado se o professor, entre um período ditado e outro, resolver também fazer comentários que não devam ser anotados, nesse caso o ILS deve largar o texto que está copiando e sinalizar rapidamente. Outro problema causado por este desconhecimento é que nas línguas orais, na nossa cultura, é muito comum que duas ou mais pessoas disputem o turno por um tempo considerável. Em debates e seminários esta atitude impossibilita totalmente a interpretação por mais de uma pessoa estar falando e, obviamente, o ILS só pode interpretar uma pessoa por vez. Apesar de alguns ILS esclarecerem os ouvintes quanto a esta peculiaridade, a maioria ainda ignora este entrave na interpretação e mesmo quando se pede ao professor que sensibilize os alunos e que faça a mediação do debate de uma forma em que as falas não sejam sobrepostas, ainda são poucos os que ativamente colaboram com a acessibilidade.

O momento mais delicado é o das avaliações, dos trabalhos de conclusão de curso (TCC), dissertações e teses. Desconhecendo as especificidades da língua portuguesa, como segunda língua para os surdos, muitos professores ficam atônitos com os textos que recebem de seus alunos surdos. O que acontece é que muitas vezes o estudante pode ter se apropriado do conhecimento, porém não tem muita habilidade de escrever sobre isso em uma língua oral. Nesses casos o apoio do ILS é essencial, principalmente na realização de avaliações em língua de sinais. Quanto ao português acadêmico exigido para TCCs, dissertações e teses a barreira é enorme. Mesmo tendo um bom nível de leitura e escrita em português, atingir o patamar de uma escrita acadêmica tem se mostrado extremamente difícil para os alunos surdos. Muitos ILS vivem o dilema de, mesmo sendo requisitados, por sua profissão, a interferirem o menos possível, acabam por exercerem a tradução escrita da sinalização dos surdos, especialmente na pós-graduação. Existem casos em que o ILS praticamente escreve todo o trabalho acadêmico, sendo que o estudante surdo limita-se a sinalizar suas idéias. Além de graves problemas de autoria, que são agravados quando mais de uma pessoa ouvinte faz este trabalho de tradução escrita, existe o agravante que a pessoa surda, desta maneira, nunca vai desenvolver as competências e habilidades necessárias à escrita do português acadêmico. Para amenizar esta situação seria interessante que o ILS contasse com horas para apoio ao português acadêmico por meio de atendimentos individuais ou em grupo. No caso de existir algum lingüista na instituição que fosse especializado em língua de sinais, esse também poderia exercer esta função. Além disso, os docentes também devem ser esclarecidos sobre como trabalhar com pessoas surdas e com ILS.

O modelo neozelandês

Como exemplo de organização, no ensino superior, vamos apresentar a Universidade de Otago, na Nova Zelândia, e sua assistência aos acadêmicos surdos. O primeiro ponto a destacar é que na Nova Zelândia existe a clara percepção de que intérpretes de língua de sinais e tutores de surdos são profissões diferentes. Isto é demonstrado pela existência de duas associações distintas, a Associação de Tutores em Língua de Sinais (New Zealand Sign Language Tutors Association - NZSLTA) e a Associação de Intérpretes de Língua de Sinais (Sign Language Interpreters Association of New Zealand - SLIANZ). No Brasil, existe uma grande confusão quanto ao limite de atuação de um ILS, muitas vezes confundido com um auxiliar de classe ou monitor, o que levou à errônea formação de “professores-intérpretes”. Este equívoco é evitado com a devida separação, existente em alguns países, do tutor em língua de sinais e do ILS, cada um com função específica, de modo que o tutor tem funções claramente interventivas e pedagógicas.

Nessa universidade existe um serviço de suporte universitário que presta atendimento às pessoas que precisam de algum tipo de apoio educacional específico, tais como: anotadores, intérpretes de língua de sinais, tutores ou monitores individuais, apoio em uma avaliação diferenciada e na reformulação do material didático, bem como, acomodações e estacionamento adequado. Todos esses serviços são completamente confidenciais e gratuitos. O ILS é contratado em período integral para assistir os acadêmicos surdos e, se houver necessidade de interpretação extra em eventos relacionados com a universidade, essa demanda também é suprida sem custos extras.

Nas diretrizes que norteiam o trabalho dos ILS, na Universidade de Otago, os pontos mais destacados são que os ILS contratados devem:

  • Cumprir o Código de Ética da categoria.
  • Continuar o seu aperfeiçoamento profissional seguindo uma formação continuada, mantendo contato com os colegas e mantendo-se a par da bibliografia recente a sobre as práticas da profissão.
  • Reivindicar o direito de pausas regulares para prevenir Distúrbios Osteomusculares Relacionados ao Trabalho (DORT), como permitido pelo regulamento e política interna de Segurança e Saúde da Universidade de Otago.

Certamente um bom exemplo a ser estudado e seguido pelas universidades brasileiras.

Reflexões e possíveis caminhos

Atualmente, vemos um grande movimento em nosso país na busca de criar e organizar associações de tradutores e intérprete de Libras com o intuito principal de promover uma melhor relação entre estes profissionais, bem como o de promover um aprimoramento profissional, ético para a categoria, através da realização de cursos de formação continuada. É neste sentido que acreditamos que esta prática é uma das quais contribuirão para que os profissionais ILS sejam mais preparados para a realidade que o espera no mercado de trabalho.

Outro aspecto importante que acreditamos, vem para contribuir com a qualidade do profissional ILS é o lançamento do Exame Nacional de Certificação de Proficiência em Língua Brasileira de Sinais - Libras e ao Exame Nacional de Certificação de Proficiência em Tradução e Interpretação da Libras/Língua Portuguesa, denominado Prolibras. O Prolibras é uma prova de âmbito nacional, realizada anualmente, que tem como um de seus objetivos, viabilizar a certificação da proficiência dos profissionais que atuam com surdos, mais precisamente dos profissionais que atuam com a Libras. Sua primeira edição será realizada simultaneamente, em todo o território nacional no início de 2007.

E por fim, acreditamos que uma qualificação, voltada aos diferentes níveis e às diferentes áreas de atuação do ILS, será o princípio para uma formação que seja realmente adequada às necessidades dos usuários desse serviço. Que os cursos propostos para a formação destes profissionais sejam realizados, preferencialmente, em níveis de graduação, pós-graduação e ou especialização. Que a formação do profissional ILS que atua no nível superior e pósgraduação seja, no mínimo, com curso superior. Que as instituições de ensino, bem como seu quadro docente e administrativo, promovam a formação continuada destes para que os mesmos tenham claro o papel do intérprete de Libras no espaço escolar.

Destacamos que estas reflexões não se encerram por aqui, tendo um amplo leque de possibilidades. Entretanto se faz necessário trilharmos os primeiros passos deste caminho para que outros ILS assumam este perfil investigativo. E que possam, a partir de suas dúvidas e inquietações cotidianas, pesquisar e refletir sobre elas.

Notas

3 Traduções livres de Maria Cristina Pires Pereira.

Bibliografia

ALBERTINI, John A. Et al. Valid Assessment of Writing and Access to Academic Discourse. Journal of Deaf Studies and Deaf Education. Vol. 2, n. 2. Oxford University Press. 1997. p.71-77.

Associação dos Profissionais Intérprete e Guias-Intérpretes da Língua de Sinais Brasileira do Estado de São Paulo. Disponível em: <http://www.apilsbesp.org/espanha.asp>. Acesso em: 15 out. 2006.

Associação dos Profissionais Tradutores/Intérpretes de Língua de Sinais do Mato Grosso do Sul. Disponível em: <http://www.apilms.org/index.html>. Acesso em: 15 out. 2006.

LANG, Harry. G. Higher Education for Deaf Students: Research Priorities in the New Millennium. Journal of Deaf Studies and Deaf Education, vol. 7, n. 4. Oxford University Press. 2002. p. 267-280.

MARSCHARK, Mark et al. Access to Postsecondary Education through Sign Language Interpreting. Journal of Deaf Studies and Deaf Education, vol. 10, n. 1. Oxford University Press. 2005. p. 38-50.

University of Otago. Disability Information and Support web site. Disponível em: <http://www.otago.ac.nz/disabilities>. Acesso em: 8 out. 2006.

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