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Angela Russo
Angela Russo
Pedagoga Educação Infantil
A constituição da memória discursiva do intérprete de Língua de Sinais
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Publicado em 2007
II Simpósio Internacional de Análise Crítica do Discurso, São Paulo
Angela Russo
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Resumo

Este trabalho analisa discursivamente os efeitos de sentidos produzidos acerca da comemoração do dia 26 de julho – “suposto” Dia dos Intérpretes em uma comunidade de Intérpretes de Língua de Sinais -ILS, participantes de uma lista virtual de discussão, tendo como referencial teórico os estudos de Análise do Discurso na linha de Michel Pêcheux, pretendendo identificar as formações discursivas que constituem o discurso dos ILS e refletir sobre o percurso da constituição da memória discursiva desta categoria.

Este trabalho é um ensaio de análise discursiva, cujo objetivo é analisar discursivamente efeitos de sentidos produzidos acerca do dia 26 de julho em uma comunidade de Intérpretes de Língua de Sinais – ILS, participantes de uma lista virtual de discussão criada pelos intérpretes gaúchos, lançada em 2002. A intenção dessa lista, que ainda se encontra em atividade, é aproximar os ILS do país através de trocas de experiência, relatos, questionamentos, divulgação de eventos, estudos sobre tradução, lingüística e técnicas de interpretação.

A análise pretende identificar as formações discursivas que constituem o discurso dos ILS e refletir sobre o percurso da constituição da memória discursiva desta categoria – os ILS. Para isto, baseio-me principalmente nos estudos de Análise do Discurso na linha de Michel Pêcheux. Tomo recortes discursivos das mensagens de ILS que participaram de uma discussão virtual durante o decorrer do dia 26 de julho de 2007, bem como em alguns dias seguintes, acerca da comemoração do Dia dos Intérpretes de Libras.

Para sistematização da análise, apresento todas as formulações numeradas. Inicio destacando a primeira mensagem - formulação discursiva, neste trabalho - que surgiu na lista:

(1) Meus caros... Hoje é o nosso dia!!! DIA DO INTÉRPRETE !!! Então, parabéns para todos nós e que DEUS nos abençoe sempre. Que as nossas mãos continuem sendo um instrumento valoroso. Um forte abraço

Logo após esta mensagem houve várias manifestações de membros da lista que se posicionaram contra a definição do dia 26 de julho como Dia do Intérprete. Vejamos a

(2): (2) Que Dia de intérprete, o quê? Penso que o dia do intérprete da Libras deveria ser escolhido por nós e votado por nós!!! Sinto imposição para aceitar esse dia, e nem sei quem/como/onde surgiu essa idéia! Não concordo!!! Não me perguntaram

Outra longa mensagem foi enviada, reforçando a anterior, questionando a adequação da escolha deste dia, bem como sugerindo um outro dia que fosse mais significativo a um outro grupo específico de ILS:

(3) Olá pessoal da lista! Para minha surpresa, hoje pela manhã recebi um e-mail me parabenizando pelo dia do intérprete. Imediatamente, repassei para todos os ILS de minha lista. Agora à noite, chegando em casa, li alguns retornos deste e-mail e um deles me fez refletir mais seriamente sobre esta data. Quem decidiu que hoje é dia do ILS? Sou ILS desde 97 e nunca ouvi falar nisto. Neste sentido propus para o autor daquela mensagem instigante uma data alternativa, pensada a partir de uma vivência significativa para alguns ILS, mais precisamente para alguns ILS de “P” . Minha sugestão é para o dia 27 de março. Por que este dia? Pois bem. No ano de 1999 se realizou aqui em “P” a V edição do Congresso Latino Americano de Educação Bilíngüe para Surdos, evento este que trouxe mais de 1.500 surdos de vários países. Antes do evento, alguns surdos da FENEIS se reuniram para escolher quais os ILS que atuariam  no evento. Após esta escolha, o coordenador dos ILS da FENEIS na época, nosso experiente (e não velho) amigo “RS”, propôs um encontro entre estes ILS para uma preparação para este grande evento. Foi uma espécie de retiro, um fim de semana no litoral na casa da “MK”, pesquisadora na área da surdez aqui de “P” . Juntamente com os 11 ILS escolhidos, foram alguns instrutores surdos para nos auxiliar naquela preparação. Foi um momento muito rico para todos que lá estavam. Um aprendizado e tanto que se viu refletido durante o evento. Trabalhamos como uma verdadeira equipe. É neste sentido que proponho esta data. O que acham?

Logo após a mensagem transcrita como formulação discursiva (3), veio outra, comunicando e esclarecendo para todos da lista o porquê daquele dia ser o Dia do Intérprete:

(4) Eis uma nova discussão... Eis uma nova briga!!! Hehehe... “A” e todos da lista, muito boa noite! Esta data tem um porquê sim, gostaria de explicar: há 10 anos, em 26/07/96, lá em “C” (na época um grande número de intérpretes de vários Estados do Brasil estavam fazendo Oficina com o Intérprete e pastor “MAA”) aconteceu uma festa totalmente idealizada pelos surdos daquela cidade, liderados pela surda “RS”. Neste mesmo dia, então... uma surpresa fora preparada para nós, momentos de muita emoção e alegria para os que tiveram a oportunidade de lá estar... desde então, timidamente, este dia vem sendo divulgado, hoje tal data completa 10 anos... nossa história!!! Discordo da sua proposta de mudança da data, apesar de entender que cada um de nós vem uma bagagem de histórias no seu trajeto de vida, enquanto intérprete. Esta data já está bem divulgada e conhecida hj em dia, mas o problema é que muitos não conhecem a história desta data, mas ela tem sua história sim!!! Tenho até fotos deste dia... sugiro que conversem com as surdas “RS” ou mesmo a “KS”, a idéia veio da parte deles, dos próprios surdos, no intuito de preparar um surpresa, uma homenagem a todos aqueles que dedicam vidas à tal Comunidade. Aliás,... qual intérprete aqui, sendo intérprete pra valer mesmo que não dedica, praticamente, sua vida pelos surdos??? Quando digo isso: tempo, estudos, pesquisas... etc etc etc... Já existe uma data, já existe uma história... e, pelo visto, já existe uma nova "briga" por aqui, pra variar, né? 26/07 - Dia do Intérprete de Libras (ou de LSB – Língua de Sinais Brasileira - pra quem já estiver me xingando... hehehe... brincadeirinha, em homenagem aos que gostam de pôr fogo aqui!!!) - PARABÉNS PARA TODOS MEUS COLEGAS DESTE BRASILLL...

Outras mensagens surgiram durante a discussão, porém acredito que estas são suficientes para o objetivo deste estudo: refletir acerca da relação entre os conceitos de formação discursiva e memória, na perspectiva da Análise do Discurso – AD. Cabe situar, primeiramente, as condições de produção do discurso. Os profissionais ILS constituem uma categoria que está em processo de organização em todo o país, tendo em vista as conquistas de novas legislações referentes aos direitos à acessibilidade universal dos surdos, ao direito de comunicação desta comunidade em sua língua nativa – a Língua Brasileira de Sinais - Libras. A luta dos ILS vem acompanhando estas conquistas da comunidade surda brasileira, caracterizada como grupos muito diversos em todo o território nacional. Portanto também há grandes diferenças quanto à formação e organização dos profissionais ILS que atuam nas diferentes regiões, já que cada uma delas tem sua história, seu caminho trilhado, seu tempo. Atualmente já se tem presente um grande movimento no país de fundação de associações em vários estados. Essas associações significam um novo lugar de luta, de organização, implicando a configuração da memória da categoria profissional. É a partir deste cenário que inicio minhas reflexões.

Penso que uma primeira tentativa de aprofundamento da perspectiva teórico-analítica enfocada neste estudo, levando em conta as formulações anteriormente apresentadas, é trazer à reflexão o conceito de Formação Discursiva (FD). Cito inicialmente a definição de Foucault (2002:43) . Para o autor, sempre

(...) que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão e no caso em que os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições, funcionamentos, transformações), diremos, por convenção, que se trata de uma formação discursiva.

Cabe destacar que Pêcheux, mesmo utilizando a mesma denominação de Formação Discursiva que Foucault, reformulou este conceito, trazendo para a discussão o caráter heterogêneo da FD, considerando a língua em um processo que tangencia o discurso e a ideologia, que funciona inconscientemente no e pelo sujeito como um dos princípios organizadores do discurso.

As regularidades percebidas no discurso devem-se aos sentidos pré-construídos relacionados ao discurso, percebidas nas filiações discursivas dos sujeitos, realizadas em certas condições de produção. Esses determinantes possibilitarão a evidência de um ou de outro sentido.

Assim sendo, podemos dizer que, para Pêcheux, a FD é o lugar em que há a articulação entre as condições de produção do discurso e a ideologia. Brandão (s/d:66), parafraseando Pêcheux, nos diz que em um mesmo texto podem-se encontrar várias formações discursivas, estabelecendo-se uma relação de dominância de uma formação discursiva sobre a(s) outra(s). Assim, observando as formulações discursivas deste grupo de ILS, nota-se uma regularidade de enunciados, convergentes entre si no reforço a uma posição discursiva, manifestada por meio dos efeitos de sentidos de:

Integração da categoria com a comunidade surda:
“os surdos ... se reuniram para escolher quais os ILS que atuariam no evento”;
“...uma festa totalmente idealizada pelos surdos”;,

Gosto pela profissão:
“foi um momento rico para todos que lá estavam”;
“...momentos de muita emoção e alegria para os que tiveram a oportunidade de estar lá” ;

Amizade entre os pares:
“...retiro, um fim de semana no litoral na casa da MK”

A formação discursiva dos ILS que está se afirmando mostra também divergências. As comunidades estabelecidas em espaços diversos têm pontos de vista divergentes sobre qual dentre os eventos relacionados a cada grupo seria o evento merecedor de registro na memória da categoria. Cada comunidade de intérpretes recorre a fatos marcantes na história de seu pequeno grupo, buscando que o sentido particular passe para a memória mais ampla da categoria em nível nacional.

Esse fato atesta que uma formação discursiva se estabelece à medida que se constitui a memória desta formação discursiva. E que a memória se vincula às práticas concretas de seus sujeitos, embora nem todas as práticas passem para a memória discursiva, a qual tem caráter coletivo. Em decorrência, a disputa pela vinculação de um marco social da categoria a um ou outro evento distintos não é uma simples disputa. A posição de pertencimento e de autoria na constituição da memória discursiva dos ILS através do processo histórico vivido por um grupo específico de ILS em 27 de julho de 1996 é posto em xeque por outros ILS que não vivenciaram a mesma história, não se sentindo parte desta, não legitimando essa memória.

Neste momento cabe uma pausa na análise para um esclarecimento quanto a dois conceitos – o de posição-sujeito e memória discursiva. Orlandi (2003:40) afirma, a respeito do lugar e da posição do sujeito e seus significados no discurso:

Assim não são os sujeitos físicos nem os seus lugares empíricos como tal, isto é, como estão inscritos na sociedade, e que poderiam ser sociologicamente descritos, que funcionam no discurso, mas suas imagens que resultam de projeções. São essas projeções que permitem passar das situações empíricas – os lugares dos sujeitos – para as posições dos sujeitos no discurso. Essa é a distinção entre lugar e posição. Em toda a língua há regras de projeção que permitem ao sujeito passar da situação (empírica) para a posição (discursiva). O que significa no discurso são essas posições. E elas significam em relação ao contexto sóciohistórico e à memória (o saber discursivo, o já-dito).

Nota-se então que a posição-sujeito não se refere a um indivíduo ou outro, ao “eu” e ao “tu”, mas sim às posições que estes sujeitos ocupam em uma determinada FD.

Neste sentido, identificamos que a partir do acontecimento discursivo que se tornou a definição do Dia do Intérprete, houve uma ruptura de uma regularidade discursiva diante de uma nova série de acontecimentos a significar, deslocando e desregulando os implícitos, os préconstruídos. A partir disto é que trago o segundo conceito, referido anteriormente, que Pêcheux (1999:52) descreve como Memória Discursiva:

A memória discursiva seria aquilo que, face a um texto que surge como acontecimento a ser lido, vem restabelecer os ‘implícitos' (quer dizer, mais tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e relatados, discursos-transversos, etc.) de que sua leitura necessita: a condição do legível em relação ao próprio legível.

Assim, o processo de inscrição do acontecimento Dia do Intérprete no espaço da memória do grupo de ILS, como nos diz Pêcheux (1999), passa por uma tensão contraditória e frágil que não chega, neste caso, a se inscrever na memória discursiva de todo o grupo de ILS. Provavelmente pelo fato de que esta memória foi construída historicamente por apenas um grupo de ILS, ou seja, um acontecimento singular, específico, exterior aos demais.

...esta data já está bem divulgada e conhecida hoje em dia, mas o problema é que muitos não conhecem a história desta data, mas ela tem sua história sim...( 4)

A partir de (4), observamos o que nos é apresentado por Pêcheux (in Nardi, 2005:163) quanto ao fato de a memória ser sedimentada porque se repete, porque se regulariza (esta data já é conhecida hoje em dia). Com efeito, a cada dia que passa mais ILS naturalizam o Dia do Intérprete; talvez no futuro o Dia do Intérprete seja comemorado independente da lembrança da polêmica ocorrida na sua fundação. Entretanto, na contramão disto, podemos ter outras interpretações deste fato, pensando inicialmente na possibilidade de a partir de novos enunciados e de novos acontecimentos como o visto em (2) (que Dia do Intérprete o quê?) esta memória estar sendo sufocada, apagando-se, ruindo-se, e os profissionais até mesmo cheguem a não fazer mais questão de ter um dia dedicado ao intérprete... Por que mesmo se costuma definir um dia especial para lembrar algo ou alguém? Esta é uma discussão em ainda em aberto. Entretanto, destaco, conforme Pêcheux (1999), que um novo acontecimento discursivo pode vir a provocar a interrupção de uma determinada regularização, produzindo então uma nova série. A memória não é plana, mas sujeita a descontinuidades.

Podemos interpretar ainda que os ILS que questionaram a data do grupo que tomou a iniciativa de registrar o Dia do Intérprete estariam reivindicando a autoria da data comemorativa ou até mesmo avaliando a necessidade real de haver uma data específica para comemorar o dia do ILS.

Observamos assim que os sentidos produzidos em uma análise dependerão das lentes que o analista utiliza para evidenciar um ou outro sentido. A interpretação do analista deve estar aberta para o estranhamento, para o inesperado, principalmente nesta situação em que a analista também faz parte deste grupo específico de ILS que participa daquela lista virtual de discussão.

O equívoco e a opacidade discursiva

Outro aspecto significativo para esta reflexão se refere à formulação discursiva 3.

Nela o sujeito, ao mesmo tempo em que questiona a veracidade do dia 26 de julho, (Quem decidiu que hoje é dia do ILS? Sou ILS desde 97 e nunca ouvi falar nisto) também propõe uma outra data (Minha sugestão é para o dia 27 de março) que, mesmo sendo significativa para um outro grupo de ILS, também não o é para os demais. A partir disto podemos apontar para uma contrariedade tanto da língua, pela negação do que foi dito, como uma contrariedade histórica. Quanto à primeira possibilidade, Fernandes (2005:70) apresenta a idéia dizendo que:

Em toda e qualquer formação discursiva, as contradições representam uma coerência visto que desvelam elementos exteriores à materialidade lingüística, mas inerente à constitutividade dos discursos e dos sujeitos. Os sujeitos são marcados por inscrições ideológicas e são atravessados por discursos de outros sujeitos, com os quais se unem, e dos quais se diferenciam.

Isto demonstra a presença do cruzamento de diferentes posições de sujeitos sócioideológicos na formulação de um mesmo sujeito. De um lado aquele sujeito enunciador que questiona a verticalidade, a imposição da escolha do dia do Dia do Intérprete e de outro o de proponente de uma outra data, também verticalmente, para os demais ILS.

É bom lembrar que até então o sujeito da formulação discursiva 3 não sabia da história narrada pelo sujeito da formulação discursiva (4) na qual relata e esclarece como e quando se iniciou a comemoração do Dia do Intérprete. Neste sentido propôs um dia que, para este sujeito, era muito significativo para uma outra parcela de ILS. A partir disto, trago a contrariedade histórica que é intrínseca ao discurso. Orlandi (1996) reitera que para a língua fazer sentido é preciso que a história intervenha. E mais, que todo o acontecimento histórico chama pela interpretação e é desse modo que língua e a história se unem na produção de sentido.

Efeito de sentido

Lembrando que Pêcheux (1969) considera o discurso como efeito de sentido entre os locutores, que a partir de um enunciado podemos ter diferentes sentidos possíveis e que estes sentidos são evidentes por um efeito ideológico (Ferreira, 2001:14), podemos resgatar alguns fragmentos das mensagens acima para refletir sobre este conceito: efeito de sentido. Meus caros... hoje é o nosso dia !!! DIA DO INTÉRPRETE!!! (1)

Que Dia de intérprete, o quê? (2)

Analisando estes enunciados observamos os diferentes efeitos de sentido produzido pelo enunciado Dia do Intérprete. Na formulação discursiva 1, há por parte do sujeito adesão à posição discursiva de valorização da classe dos intérpretes por meio do estabelecimento de um dia para comemoração; reforça a importância de ter um dia especial para lembrar a todos o trabalho dessa categoria profissional, em sua especificidade. Porém o mesmo não acontece na formulação discursiva 2, em que o sujeito não se identifica com a justificativa da definição do dia, negando a veracidade da data, que não lhe faz sentido. A retomada negativa do enunciado do interlocutor dá a entender até mesmo que discorde da necessidade de haver o dia do intérprete, radicalização que não pareceria plausível.

Pensando nisto, resgato Pêcheux (Zandwais, 2005:146) quando este apresenta as modalidades de subjetivação dos sujeitos e que podemos referir ao sujeito da formulação discursiva 2.

Caracteriza um processo de contra-identificação entre o sujeito-enunciador e o sujeito-universal; ou seja, o sujeito-enunciador se volta contra o sujeito universal através da dúvida, do questionamento, da contestação e da revolta, lutando contra as evidências não-questionáveis que lhe são apresentadas pelo sujeito do saber de uma FD, nos termos de Courtine (1981), a partir do próprio lugar em que se inscreve como sujeito...passa a intervir no processo de reformulação dos saberes que o representam.

É importante destacar que o sujeito da formulação discursiva 2 é reconhecido como um ícone entre os ILS do país, pelo seu pioneirismo nesta profissão, por sua experiência enquanto formador de ILS e por suas manifestações acerca da conduta ética dos ILS, além de ser um dos moderadores da lista virtual de discussão em questão. Neste sentido, o lugar de onde este sujeito fala, bem como a condição de produção de seu discurso é carregado destes pré-construídos, destes já-ditos, dos outros ILS em relação a ele.Ele não se situa fora da classe.

Uma outra situação que merece ser analisada como um efeito de sentido é o fato de serem os surdos os protagonistas da escolha do Dia do Intérprete (... a idéia veio da parte deles, dos próprios surdos, no intuito de preparar um surpresa, uma homenagem a todos aqueles que dedicam vidas à tal Comunidade). É estranho pensar que um outro grupo (os surdos) escolha uma data para se comemorar o Dia dos Intérpretes (por mais ligados que estes dois grupos possam ser), e que este grupo se filie a este discurso. O próprio grupo é que costuma assinalar as datas de celebração de luta e reconhecimento do grupo, destacando aquela data escolhida pelo próprio grupo. Um exemplo disto foi o processo, com discussões intermináveis, de escolha do dia da consciência negra no país. A data que os brancos escolheram, 13 de maio, dia da abolição da escravatura, não era reconhecida pela maioria do povo negro, mas sim o dia 20 de novembro, dia da morte de Zumbi, o líder libertador. Portanto é curioso que nesta situação, alguns ILS venham tomando esta data, sugerida por surdos, para comemorarem o seu dia.

Com relação ao mesmo fragmento da formulação discursiva (4), acrescido de um outro complemento, outra análise deste “assujeitamento” de alguns sujeitos ILS filiados à escolha desta data é possível de ser feita. O sujeito da formulação discursiva (4) diz:

foi feita uma homenagem a todos aqueles que dedicam vidas a tal Comunidade. Aliás... qual intérprete aqui, sendo intérprete pra valer mesmo que não dedica, praticamente, sua vida pelos surdos???

A condição de produção do seu discurso merece ser explicitada. Ele se refere a uma oficina promovida por uma ordem religiosa naquele dia há 10 anos atrás, ou seja, podemos identificar um efeito ideológico, de caráter paternalista, assistencial, caritativo que constitui essa fala. O enunciado: dedicam vidas e dedica sua vida pelo surdos representa marcas lingüísticas de concordância com essa FD. Pensando sobre a leitura de Pêcheux em sua primeira época (1969), podemos dizer que o enunciado do sujeito da formulação discursiva 4 é atravessado pela ideologia presente no discurso religioso e pelo inconsciente, onde o seu dizer não se origina dele mesmo, mas sim de outras vozes discursivas; estas se manifestam no intradiscurso, no fio de discurso, um simulacro material do interdiscurso (Ferreira, 2001:19).

Considerações Finais

Os resultados obtidos neste breve estudo apontam ao conceito de memória discursiva, destacando-se suas características de dinamicidade e heterogeneidade. Conforme a teorização assinalada, indicam o modo como os acontecimentos diversos são passíveis de ganhar registro na memória discursiva.

A organização da categoria profissional dos Intérpretes de Libras – e sua formação discursiva - está vinculada a acontecimentos diversos que congregaram os participantes, representando filiação a uma memória discursiva caracterizada pela mobilidade de sua constituição, que é heterogênea. A análise apontou à disputa pelo registro de um acontecimento fundador da classe na memória profissional, numa disputa entre grupos diversos dessa categoria.

Acredito que a reflexão feita, a partir do corpus apresentado, fazendo uma ponte com alguns conceitos da AD foi muito significativa, pois proporcionou um entendimento maior acerca da relação entre o uso da língua, historicizado pelos sujeitos, e os sentidos produzidos por este uso. O fato do grupo de ILS no Brasil estar em processo de regulamentação enquanto categoria profissional, organizando-se em associações diversas, bem como a busca por uma formação de qualidade, gera muita discussão em torno desta pauta. Como observamos, os discursos produzem diferentes sentidos no grupo – e não deveria de ser o contrário. Entretanto é necessário que tenhamos, e aqui me incluo por fazer parte do grupo de ILS do Brasil, uma coerência mínima entre nós, para que possamos conquistar o espaço e o reconhecimento profissional adequado as nossas demandas.

É assim que, através de algumas formações discursivas destacadas neste artigo, bem como os efeitos de sentido interpretados nesta análise, conseguimos observar o caráter não linear, diversificado e regionalizado da constituição da memória discursiva dos ILS do Brasil, havendo um jogo de poder e forças, ainda que inconsciente, marcado por filiações diversas.

Certamente que este ensaio de análise é o primeiro passo, contudo de uma significância ímpar, na construção do meu caminho enquanto pesquisadora e analista do discurso, sujeito a críticas e a posicionamentos diversos.

Bibliografia

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