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Ester Barbosa Fidelis
Ester Barbosa Fidelis
Especialista em Tradução/Interpretação e Ensino de Libras
A Interpretação da Bíblia para a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) – Uma Reflexão
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Publicado em 2007
Universidade Presbiteriana Mackenzie
Ester Barbosa Fidelis
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Resumo

Este trabalho visa incentivar a reflexão sobre a interpretação do texto bíblico para língua de sinais, considerando a importância de teorias de tradução, analisando em que medida elas podem ser aplicadas à realidade do intérprete de língua de sinais em geral e, mais especificamente, a responsabilidade do intérprete de LIBRAS (Língua Brasileira de Sinais) na transmissão da mensagem bíblica para um público diferenciado, que de outra maneira seria excluído devido as suas especificidades comunicativas. Para tanto, analisamos a interpretação de Marília Moraes Manhães da carta de Paulo aos Colossenses para LIBRAS (Língua Brasileira de Sinais), suas escolhas de interpretação em função de seus receptores, baseando-nos nos estudos sobre língua de sinais, na formação de palavras em LIBRAS, juntamente com a teoria de Karl Simms sobre o texto Sensível, a comparação de Nida e Taber entre Correspondência Formal e Equivalência Dinâmica e a visão Desconstrutivista de Derrida.

1. A tradução bíblica no fortalecimento das línguas nacionais

A comunidade surda tem alcançado, ao longo dos anos, seu espaço na sociedade. Um dos marcos dessa conquista, no Brasil, por exemplo, foi a oficialização da LIBRAS 1 como meio legal de comunicação e expressão. A partir desse momento histórico na vida dos surdos 2, muitos passos foram dados em prol de sua interação social, efetivamente, como cidadãos. A língua portuguesa, por exemplo, não tem valor superior à LIBRAS no Brasil (apesar de não poder substituir a modalidade escrita da língua portuguesa), pois já se reconheceu que as línguas de sinais são genuínas e tão complexas como qualquer outra língua.

Essa constatação evoca, em parte, os primórdios da prática tradutória. Sabe-se como a disseminação do Evangelho influenciou no desenvolvimento de comunidades que, por vezes, não possuíam sequer a própria língua registrada ortograficamente, como é o caso de algumas tribos indígenas. Enfim, foi a tradução da Bíblia para as línguas vernáculas, que possibilitou o acesso ao conhecimento por parte das comunidades menos abastadas e que não dominavam as línguas “consagradas” por uma elite erudita.

Em “Os tradutores na história” de Jean Delisle e Judith Woodsworth (2003), há um capítulo específico que trata justamente do trabalho do tradutor no desenvolvimento das línguas nacionais.

Entre outros exemplos que embasam esse fato, destacam-se as contribuições de Martinho Lutero que, além de seu papel eclesiástico, promoveu a formação de uma língua literária alemã. Na África, a associação entre língua e religião contribuiu muito para a promoção das línguas locais, graças ao trabalho dos missionários envolvidos na difusão do Evangelho, além de outros casos em que a circulação da Bíblia na língua falada pelo povo, incentivou até a alfabetização, fortalecendo assim, o idioma nacional.

Diante desses acontecimentos, nos lembramos da importância de figuras como a do abade l‟Epée que preocupado com a salvação das almas dos surdos parisienses, acompanha-os na formalização de uma língua de sinais.

A Bíblia em LIBRAS é um trabalho pioneiro que reforça esse protagonismo do texto bíblico em projetos que procuram alcançar os mais diversos grupos sociais. No entanto, a interpretação da Bíblia para uma língua de sinais, envolve processos que nem sempre se enquadram totalmente dentro das teorias desenvolvidas com base no texto escrito de uma língua de modalidade oral-auditiva 3.

Isso ocorre pelo simples fato de que enquanto a interpretação é uma situação de concomitância ou simultaneidade da transmissão da mensagem de uma língua de partida para uma língua de chegada, a tradução é um processo que dispõe de tempo e recursos tais como dicionários e revisor. Além disso, as diferenças entre uma língua oral-auditiva e uma língua de modalidade visual-espacial 4, implicam, por exemplo, que um ouvinte, mesmo sem olhar para o transmissor de uma mensagem, entenda o que ele diz, enquanto que a pessoa surda não.

Essas são apenas algumas das questões que levantamos em nossa análise da interpretação realizada por Marília Moraes Manhães da carta de Paulo aos Colossenses para LIBRAS, gravada em DVD no ano de 2005, questionando, basicamente, até que ponto sua preocupação em “facilitar” o entendimento das mensagens religiosas pelos surdos, não fazendo uso dos sinais adotados nas igrejas evangélicas, é positiva, já que esses sinais expressam termos “típicos” de contextos religiosos, como, “graça”, “apóstolo”, além dos nomes dos livros da Bíblia e de seus personagens que muitas vezes carregam significado mais profundo do que aqueles sinais utilizados pela intérprete.

2. LIBRAS - uma língua de verdade

Baseamos nossa análise, primeiramente, nos estudos de Lucinda Brito (1995?) sobre a gramática da LIBRAS. Os estudos lingüísticos sobre as línguas de sinais consideram que sua gramática particular é intrinsecamente a mesma das línguas orais sendo os princípios básicos respeitados em ambas as modalidades. Um desses princípios, seguindo a linha saussuriana 5, é o da dupla articulação, que pressupõe a existência de unidades mínimas formadoras de unidades complexas (são as unidades mínimas distintivas e de morfemas ou unidades mínimas de significado). Podemos dizer que as palavras da LIBRAS e do português se estruturam a partir de unidades mínimas espaciais e sonoras, respectivamente. Essas unidades são distintivas porque, quando substituídas por outra, geram uma nova forma lingüística com um significado distinto.

Observemos os exemplos na figura 1.

Temos acima duas palavras ou sinais distintos com significados também distintos somente pelo fato de o primeiro sinal - APRENDER - ser articulado na testa e de o segundo – SÁBADO – ser articulado na boca, ou seja, é o ponto de articulação que os distingue. Em português, essas unidades mínimas equivalem aos fonemas /p/ e /b/ das palavras “pata” e “bata”, pois eles também distinguem as formas lingüísticas e seus significados. Assim, por terem formas idênticas exceto por uma característica espacial (ponto de articulação) na LIBRAS e fonética (sonoridade) no português, APRENDER e SÁBADO; “pata” e “bata”; podem ser considerados pares mínimos.

Outro ponto importante a ser considerado sobre a língua de sinais é que não existe uma língua universal com a qual surdos de todo o mundo podem se comunicar entre si. Pelo contrário, além de existirem línguas diferentes, inclusive dentro de um mesmo país (como é o caso da língua de sinais da comunidade indígena da floresta amazônica, Urubu-Kaapor, e a LIBRAS no Brasil), podem-se observar registros diversos (por categoria profissional, status social, idade, nível escolar etc.), além de dialetos regionais. É importante ressaltar, portanto, que apesar de a iconicidade ser mais evidente nas estruturas das línguas de sinais do que nas orais pelo fato de o espaço parecer ser mais concreto e palpável do que o tempo utilizado pelas línguas orais-auditivas que constituem suas estruturas através de seqüências sonoras que basicamente se transmitem temporalmente, as formas icônicas das línguas de sinais não são universais ou retrato da realidade.

[...] cada língua de sinais representa seus referentes, ainda que de forma icônica, convencionalmente, porque cada uma vê os objetos, seres e eventos representados em seus sinais ou palavras sob uma determinada ótica ou perspectiva. (Brito, [1995?]).

O exemplo que Ferreira Brito usa é o sinal ÁRVORE que em LIBRAS representa o tronco da árvore por meio do antebraço e os galhos e as folhas por meio da mão aberta e do movimento interno dos seus dedos enquanto que, o sinal para o mesmo conceito em LSC (língua de sinais chinesa) representa apenas o tronco com as duas mãos semi-abertas e os dedos dobrados de forma circular (ver figura 2).

3. A criação de novos sinais na LIBRAS

Valendo-nos também da reflexão feita por Vilmar Silva e Fábio Irineu da Silva (2002?) sobre a criação de novos sinais para a disciplina de informática do curso de desenho técnico ministrado no Centro Federal de Educação Tecnológica de Santa Catarina para jovens e adultos surdos. Basicamente, em todas as línguas humanas, orais ou visuais-espaciais, as palavras/sinais pertencem a uma categoria lexical. Assim, tanto as línguas de sinais, quanto as línguas faladas, possuem um léxico e um sistema de criação de novos sinais em que as unidades mínimas – morfemas – são combinadas. Alguns desses processos, entretanto, diferem das línguas orais:

[...] nas línguas orais a criação de palavras morfologicamente complexas são muitas vezes formadas pela junção de um prefixo ou sufixo a uma raiz. Enquanto, nas línguas de sinais os processos para criação de sinais resultam de processos não-concatenados em que uma raiz é enriquecida com movimentos e contornos no espaço de sinalização. (BELLUGI; KLIMA, 1979).

Assim, enquanto em uma língua oral temos uma derivação “linear”, por exemplo, acrescentado o sufixo – dor – à direita do verbo – distribuir – e formando o substantivo – distribuidor –. Em LIBRAS, vemos que nos sinais SENTAR e CADEIRA, a mudança na categoria lexical, de verbo para substantivo, ocorre por um processo de derivação baseado em uma mudança “não-linear”, o movimento (ver figura 3).

Observando os processos de formação dos sinais utilizados por professor e alunos na disciplina de informática, primeiramente, os autores consideraram, entre outros aspectos, a criação de sinais a partir da apropriação do português, em que “a configuração da mão representa a primeira letra da palavra em português, ou a palavra é soletrada manualmente na seqüência de configurações de mão tendo uma correspondência com a seqüência de letras escritas no português.” (SILVA, Vilmar; SILVA, Fábio Irineu da, [2002?]). É o caso do sinal para formatar (ver figura 4).

Os autores ressaltam que para Quadros e Karnopp (2003), “esses sinais fazem parte do léxico periférico da LSB 6. São sinais não-nativos 7 que foram incorporados pelas comunidades surdas brasileiras pela influência direta da língua portuguesa. (SILVA, Vilmar; SILVA, Fábio Irineu da, (2002?, p.8, grifo nosso).”

Na interpretação de Colossenses por Marília Manhães, assim como o sinal criado para formatar, muitos sinais bíblicos sofrem a influência do português. Os nomes dos livros, por exemplo, trazem as configurações de mão de acordo com a primeira letra do nome do livro (ver figura 5)

O interessante desses dois sinais mostrados é que se tratam de sinais da LIBRAS que apenas sofreram uma alteração da configuração de mão 8 (ver figura 6).

4. Alguns aspectos das teorias de Nida e Taber, Simms e Derrida sobre a tradução

Com base nos pressupostos sobre as especificidades das línguas de sinais, podemos considerar até que ponto teorias sobre tradução, produzidas pelos autores aqui selecionados, têm dado conta das questões que podem envolver esse processo específico, levando em consideração a crítica quanto à artificialidade dos sinais convencionados pelas igrejas evangélicas que a intérprete Marília Manhães, cujo trabalho analisamos, opta por não utilizar.

Dentre essas teorias, destacamos a comparação feita no trabalho de Nida e Taber (The Theory and Practice of Translation, 1982) entre a Dynamic Equivalence (Equivalência Dinâmica) e a Formal Correspondence (Correspondência Formal) das respectivas versões da bíblia “Today‟s English Version” (TEV) e “Revised Standard Version” (RSV). A primeira, mais centrada no receptor da língua de chegada, na maneira como ele reage à mensagem, buscando provocar a “mesma reação” do leitor da língua de partida. A segunda, isto é, a Formal Correspondence, priorizando a forma e o estilo do texto da língua de partida. O que é importante apontarmos, aqui, é que a versão da Bíblia Tradução na Linguagem de Hoje (TLH), utilizada pela intérprete Marília Manhães, segue o mesmo “estilo” da (TEV), enquanto a versão Revista e Atualizada de João Ferreira de Almeida se assemelha à (RSV).

Nida e Taber consideram que muitas vezes, o significado das palavras que aparecem na Bíblia depende do contexto cultural em que os textos foram escritos. Assim, em muitos casos, seria uma opção inventar novos termos para expressarem, no contexto da língua de chegada, o sentido que tinham na língua de partida, mas os teóricos propõem outra solução: “In these instances it is better for the translator to select the meaning which is seems best supported by all the evidence and to put this in the text, while placing the other in a marginal note (1982, p. 8, grifo nosso)” 9.

Mas como inserir essa “nota de rodapé” em um texto interpretado e não escrito? Na interpretação de pregações para LIBRAS em igreja evangélica, pudemos viver experiências que se enquadram nessa situação de precisar fazer uma “nota de rodapé” para que o receptor da mensagem compreenda o significado de determinado termo ou trecho em seu contexto original, faz-se isso movimentando as mãos espalmadas paralelas ao lado do corpo, colocando, assim, o assunto de lado. São verdadeiras notas de rodapé que servem como uma explicação à parte para que os surdos se inteirem de algum assunto ou termo que faz parte de outra cultura, por exemplo. Isso quando o próprio pregador não traz essa explicação em sua fala, o que ocorre muitas vezes para situar os ouvintes do contexto cultural do próprio texto bíblico.

Podemos nos referir aqui, ao termo, Circuncisão, que aparece na interpretação que analisamos. Não seria esse um caso para uma “nota de rodapé”? Ou será que a soletração manual da palavra em português que a intérprete Marília Manhães realiza é suficiente para que o público surdo compreenda seu significado? A não ser que esse conhecimento já tenha sido adquirido por eles.

4.1 O texto bíblico como texto sensível

Para o autor, o “conteúdo” é parte do que faz um texto sensível, além de outros elementos. Simms fala de conteúdo e não de tema, pois um texto médico pode ter sexo como tema sem, contudo ser considerado ofensivo como pornografia poderia ser. (1997, 3-4.). Diante disso, o autor aponta três questões contextuais: onde determinado texto está inserido, para que público foi escrito e quem o lê (que pode não fazer parte do público-alvo do texto e se sentir ofendido). Simms aponta ainda quatro formas pelas quais um texto pode ser considerado sensível pelas objeções que causa por motivos ligados ao estado, à religião (ou cultura), à decência (ou pudor), ou a determinadas pessoas em particular. Com relação aos textos sagrados, especificamente, o que faz deles sensíveis, segundo Simms, é a crença de que expressam as intenções do Autor Original, assim o “autor do texto” no senso comum é meramente um escriba, alguém que transcreve uma Palavra mais originária com a qual ele é inspirado.(SIMMS, 1982, p.19).

A partir desses pressupostos do que seja um texto sensível, entre outras considerações o autor se posiciona em relação à tradução “livre” que para ele não é algo educativo, pois não permite que o destinatário encontre a mensagem por ele mesmo a partir de uma imersão na cultura-fonte, tendo que tirar das palavras do tradutor o que a mensagem expressa ser a “verdadeira”.(SIMMS, 1982, p. 9).

[...] nowadays the use of square brackets containing words or phrases from the source language together with explanatory footnotes is more the norm. The advantage of this is that it is democratic and that this democracy comes from the pro-active intertextual reading experience, not as a gift from the translator. The translator is (highly) visible, but through the use of textual apparatus the reader knows which is the translator‟s material and which the source test‟s. (SIMMS, 1982, p. 10) 10

A partir dessa afirmação, Simms considera que isso é uma questão de prioridades do tradutor, já que Nida e Taber, por exemplo, estão explicitamente preocupados com a tradução da Bíblia como um instrumento de evangelismo, enquanto que outros podem considerar mais importante ensinar às pessoas como se ler.

Referimo-nos aqui, especificamente, a algo que poderia ser feito na interpretação de Marília Manhães de forma a enriquecer o público surdo no conhecimento de outras culturas como as que a Bíblia apresenta, utilizando para isso explicações de determinados conceitos que no texto escrito seriam as “notas de rodapé”, apontadas anteriormente.

Outro problema que o autor soma a esse é a questão da “funcionalidade”, que Nida retoma. O exemplo citado por Simms é o trecho da oração do Pai Nosso “o pão nosso de cada dia nos dá hoje;” que pode ser causar engano em partes do mundo onde pão é um item de luxúria, a intenção funcional do original claramente é “alimento” no sentido mais geral. Assim podem ser necessárias adaptações do texto original para uma cultura diferente, mas isso dá margem para objeções muito fortes, uma vez que é a precisão referencial do texto que garante sua autenticidade.

Talvez seja interessante assinalar com vistas a essa funcionalidade que, apesar de o surdo viver e conviver com as pessoas ouvintes de seu país, isso não significa que sua cultura seja necessariamente ou mesmo estritamente a mesma compartilhada por ouvintes. Já comentamos no capítulo anterior sobre comunidade surda que além de possuir sua língua própria como marca cultural, também partilha de uma diferente visão de mundo, inclusive em relação aos ouvintes com os quais convive.

4.2 Tradução entre a modalidade oral-auditiva e espacial-visual

Karl Simms incluir em seus estudos sobre a tradução as línguas de sinais, considerando, inclusive os mundos diferentes em que vivem as pessoas com quatro sentidos em vez de cinco. Sem desmerecer, as pessoas com um sentido a menos, mais especificamente os surdos, o autor ressalta que a sensibilidade também é uma questão através das modalidades.

Esse tema é mais aprofundado no texto Seeing the difference: Translation across modalities (Vendo a diferença: tradução entre modalidades) de Mary Brennan em que, basicamente, basicamente, a autora desenvolve sua reflexão com base em uma interpretação jurídica para língua de sinais em que todo o processo girou em torno de como o réu havia segurado uma faca. Ao falarmos de uma ação comum como sentar em uma cadeira, podemos utilizar a palavra “cadeira” em seu sentido neutro sem especificarmos de que tipo de cadeira estamos falando, isso já não ocorre na língua de sinais. Precisamos fazer uso de sinais denominados classificadores, eles acrescentam a determinado “nome” características que o distinguem dentro de uma série de possibilidades. Mary Brennan comenta sobre a BSL (Língua Britânica de Sinais):

BSL makes use of a set of morphemes usually termed classifier morphemes. These incorporate categorical information: they tall us something about the category of phenomena to which an item belongs. The basis of such categorization is very often either the size and shape of objects or the way in which human beings interact with objects, in particular, how they get hold of objects. Thus, in BSL, rather than having a single morpheme sign meaning „give‟, there is a range of signs. (SIMMS, 1997, p.98-99) 11

O emprego dos classificadores também ocorre na LIBRAS, uma característica bem particular das línguas de sinais que pode ser considerada como um recurso enriquecedor que as línguas orais não possuem, o que tem a ver justamente com a característica essencialmente visual das línguas de sinais.

Outra peculiaridade das línguas de sinais é a relação de localização que estabelecem entre objetos e/ou pessoas dentro de um espaço determinado. Mary Brennan cita o exemplo da interpretação de um paciente em relação a seu médico, que devem ser localizados em posições que representem suas localizações físicas reais. Em nossa experiência com interpretações em igreja, quando há um diálogo entre homem e Deus, é como se Deus olhasse do céu pra o homem na terra em posição inferior.

Dois outros sinais que caberiam aqui, mas que na verdade representam uma localização de certa forma convencionada pela sociedade, seriam: CÉU e INFERNO, enquanto CÉU é localizado na altura da cabeça, INFERNO está em posição inferior (ver figura 7).

Com base nos aspectos específicos da modalidade visual-espacial apontados aqui e de outros tantos que demonstram a complexidade da interpretação para as línguas de sinais, podemos concluir que a tradução entre modalidades requer do intérprete que veja o mundo com os olhos de seus receptores, neste caso os surdos, de maneira a utilizar os vários recursos peculiares das línguas de sinais como os classificadores para a maior naturalidade possível à interpretação, o que aproximará ainda mais seu público da mensagem que deseja transmitir.

4.3 A visão Desconstrutivista aplicada à interpretação bíblica

Derrida considera a língua de chegada e a de partida não como pólos opostos, mas complementares. A partir dessa visão, o teórico se opõe à teoria na qual, tradicionalmente, a tradução é vista a partir de uma concepção em que se tenta manter intactas as línguas envolvidas no processo tradutório. O que Jacques Derrida propõe em sua visão desconstrutivista é encarar a tradução como acontecimento da linguagem sendo que, na leitura que Paulo Ottoni faz de Derrida em A tradução da différance: dupla tradução e double bind, artigo publicado pela Revista de lingüística ALFA:

[o tradutor] é um sujeito que intervém de maneira efetiva na transformação e produção de significados, por meio de uma espécie de implante, de enxerto, de contaminação entre as línguas envolvidas na tradução [...]” (SISCAR; RODRIGUES, 2000, p.46).

Como deixar de lado, então, que essa efetividade se aguce, ainda mais quando tratamos da tradução de um texto sensível como a Bíblia? Ou seja, por mais que Marília Manhães não “contaminar” a LIBRAS com os sinais criados pelas igrejas para designar termos bíblicos, a própria posição da intérprete de utilizar outros meios para transmitir a mensagem é intervir de maneira efetiva na transformação e produção de significados, pois como já vimos anteriormente, por mais que a intérprete não faça uso desses sinais que considera artificiais, ela faz uso do que consideramos empréstimos, soletrando manualmente muitas palavras do português, o que também é um tipo de “contaminação”.

Toda a problemática desconstrutivista de Derrida, portanto, gira em torno do que ele chama double bind: a necessidade e a impossibilidade da tradução, que, segundo o teórico, é algo que deve ser suportado, é um desejo de se apropriar do original quando traduzimos, contra o qual nada se pode fazer, sem o qual não haveria tradução (Siscar; Rodrigues, 2000, p.46).

A partir dessa visão podemos concluir que, as considerações teóricas tradicionais da tradução podem se equivocar ao considerar que o ato de traduzir se resuma a um mero transporte de conteúdos, quando na verdade até a própria posição de não se “mostrar” em sua tradução enquanto tradutor “invisível”, é um ato de violência para com o texto original, pois a partir do momento que ele passa a ser traduzido, é inevitável que sofra um ato de violência, “[...] ou seja, a violência da tradução, de toda e qualquer atividade de comunicação, passa a ser uma questão a ser investigada e compreendida, e não vista como fonte de embaraço” (SISCAR; RODRIGUES, 2000, p. 125). Assim, o tradutor sempre estará em dívida com o texto original, o que não deve desmotivá-lo, no exercício de sua tarefa mesmo que para isso dependa constantemente de “perdão”.

Texto Bíblico Português Bíblia na Nova Tradução na Linguagem de Hoje LIBRAS Interpretação de Marília Moraes Manhães
Colossenses 1:1-14 Carta de Paulo aos Colossenses CARTA P-A-U-L-S C-O-L-O-S-S-E-N-S-E-S
1Saudação 1Eu, Paulo, *apóstolo de Cristo Jesus pela vontade de Deus, escrevo junto com o irmão Timóteo esta carta EU PAULS SEGUIDOR JESUS MOSTRAR DESEJO D-E-U-S SENHOR ESCREVER JUNTO HOMEM T-I-M-O-T-O ESCREVER CARTA
2ao povo de Deus que mora na cidade de Colossos, os nossos fiéis irmãos em Cristo. DAR PESSOAS CONFIAR DEUS VIDA CIDADE C-O-L-O-S-S-O-S TAMBÉM CRENTE VERDADE
Que a *graça e a paz de Deus, o nosso Pai, estejam com vocês! AMOR DEUS PAI ABENÇOAR VOCÊS

O que observamos com relação à interpretação feita por Marília Manhães é que, mesmo que ela não considere os sinais bíblicos do manual O clamor do Silêncio “ideais” de acordo com a LIBRAS, a simples não-utilização dos mesmos sem ao menos uma “nota explicativa” também não é suficiente, pois culmina, inclusive, em perda de significado.

Apóstolo por SEGUIDOR, pois aqueles que simplesmente seguem a Jesus não podem ser considerados apóstolos, palavra que carrega um sentido muito mais profundo de discípulo, embaixador, ministro.

O sinal JESUS não está especificando, necessariamente, o Salvador prometido por Deus ao seu povo, o Messias, mas aquele homem que nasceu de Maria e que após levar uma mensagem às pessoas de sua época foi crucificado, considerando que a maioria dos judeus até hoje aguardam a vinda do Cristo, pois não reconheceram em Jesus o Salvador prometido por Deus e anunciado pelos profetas.

Apontamos também a palavra – graça – que tem um significado não apenas no contexto religioso ou bíblico, mas pode ser referida também em outro contexto em que alguém está em posição de autoridade para conceder um favor imerecido a outrem, como, por exemplo, um rei e um servo. Biblicamente, a graça diz respeito, principalmente, ao favor de Deus para as pessoas que como pecadoras não mereciam o Céu ou a salvação da morte, mas Deus por sua infinita Graça concede esse favor a todo aquele que confessar a Jesus como Senhor. O sinal utilizado pela intérprete para traduzir graça para LIBRAS é AMOR.

Notas

1 LIBRAS é uma das siglas para referir a língua de sinais: Língua Brasileira de Sinais. Esta sigla é difundida pela Federação Nacional de Educação e Integração de Surdos – FENEIS. LSB é outra sigla para referir-se à língua brasileira de sinais: Língua de Sinais Brasileira. Esta sigla segue os padrões internacionais de denominação das línguas de sinais.
2 Surdos são as pessoas que se identificam enquanto surdas.
3 língua de modalidade oral-auditiva - As línguas apresentam diferentes modalidades. Uma língua falada é oral-auditiva, ou seja, utiliza a audição e a articulação através do aparelho vocal para compreender e produzir os sons que formam as palavras dessas línguas. (Quadros, 2001, p. 9).
4 língua de modalidade visual-espacial – Ao longo do trabalho, essa nomenclatura apresenta variações de acordo com a ênfase que se deseja dar e o contexto em que está inserida: espaço-visual, mais utilizada para referir à língua de sinais propriamente dita, que se articula no espaço e é percebida visualmente; visual-espacial, usada para designar, principalmente, a modalidade da língua de sinais, enfatizando seu aspecto visual; gestual-visual mais ligada ao canal ou meio de comunicação, enfocando os movimentos gestuais e expressões faciais que são percebidos pela visão.
5 linha saussuriana – Refere-se à teoria lingüística de Saussure.
6 LSB – No trabalho citado, Quadros e Karnopp utilizam a sigla LSB que segue os padrões internacionais de denominação das línguas de sinais.
7 nativo – entende-se aqui por nativo aquilo que é próprio de determinada comunidade. Ou seja, a LIBRAS é a língua nativa dos surdos brasileiros.
8 é a forma que a mão assume durante a realização de um sinal. Pelas pesquisas lingüísticas, foi comprovado que na LIBRAS existem 43 configurações das mãos (Quadro I), sendo que o alfabeto manual utiliza apenas 26 destas para representar as letras. (STROBEL, K.L.; FERNANDES, S.,1998, p.8)
9 Nessas circunstâncias é melhor para o tradutor selecionar o significado que parece ser melhor sustentado por toda a evidência e colocar esse no texto, enquanto coloca o outro em uma nota de rodapé (NIDA; TABER, 1982, p. 8, tradução nossa.).
10 atualmente o uso de colchetes contendo palavras ou frases da língua-fonte junto com notas de rodapé é mais a norma. A vantagem disso é que isso é democrático e que essa democracia vem da experiência de leitura intertextual pró-ativa, não como um presente do tradutor. O tradutor é (altamente) visível, mas através de aparatos textuais que o leitor sabe qual é o material do tradutor e qual é o do texto-fonte. (SIMMS, 1982, p. 10, tradução nossa.).
11 A BSL faz uso de uma série de morfemas geralmente denominados morfemas classificadores que incorporam informações categoriais: dizem-nos algo sobre a categoria dos fenômenos aos quais um item pertence. A base de tal categorização é muito freqüentemente tanto o tamanho quanto a forma dos objetos ou a maneira como seres humanos interagem com eles, especialmente como eles os seguram. Assim, em BSL, em vez de haver um único sinal de morfema significando “give” [dar], há vários sinais. (SIMMS, 1997, p.98-99, tradução nossa.).

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