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A interface entre a apropriação da linguagem por sujeitos surdos e a língua de sinais
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Publicado em 2019
Revista Sinalizar, Goiânia, v. 4
Sílvia Andreis Witkoski
Marta Rejane Proença Filietaz
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Resumo

Este artigo aborda a apropriação da linguagem por surdos, apontando a relevância do papel da Libras em suas interações familiares, escolares e sociais. As discussões estão alicerçadas sobre a teoria sócio histórica de Vygotsky, segundo a qual o desenvolvimento da linguagem ocorre impulsionado pelas interações humanas. A partir dessa perspectiva teórica, foram levantadas questões sobre os efeitos da privação da Língua de Sinais em crianças surdas, uma lacuna que as impede de alcançar desenvolvimento semelhante ao das crianças ouvintes por não terem acesso a uma língua plena. Além da necessidade de a criança surda ter acesso à Língua de Sinais desde tenra idade, aponta-se também a importância da criação de um ambiente bilíngue familiar, escolar e social, para que ela possa ter interações de qualidade, fomentando a plena apropriação da linguagem e de outros desenvolvimentos correlatos.

Introdução

Para se compreender os processos de apropriação da linguagem por sujeitos surdos, faz-se necessário também discutir o papel da Língua de Sinais em suas interações familiares, escolares e sociais. A reflexão sobre o tema dar-se-á a partir da teoria sócio histórica (VYGOTSKY, 2003 e 1989), que tem como pilar a dimensão social, na qual entende-se que os instrumentos e os símbolos medeiam as relações das pessoas com o mundo, influenciando, inclusive, seus mecanismos psicológicos e formas de agir.

E assim, a partir dessa abordagem, aproximando os fundamentos da apropriação da linguagem às singularidades dos sujeitos surdos, objetiva-se observar a importância das instituições sociais (família e escola) em suas vidas e, sobretudo, da relevância de as interações serem realizadas por meio da Libras, para o desenvolvimento da linguagem e seus benefícios correlatos.

1. A apropriação da linguagem a partir de uma perspectiva sócio histórica

Inicialmente, deve-se destacar a importância da linguagem como mediadora das interações, fazendo do homem um ser sociocultural. Neste sentido, segundo Vygotsky (2003), a constituição da linguagem é fundamental para a relação humana, pois é por meio dela que se estabelece a relação dos sujeitos entre si e do indivíduo consigo mesmo e com a cultura. É também por intermédio da linguagem que ocorrem o processo de significação das relações e o acesso ao saber, aos valores e às normas de conduta. De acordo com Vygotsky 2003, p. 38 )),

[...] a capacidade especificamente humana para a linguagem habilita as crianças a providenciar instrumentos auxiliares na solução de tarefas difíceis, a superar a ação impulsiva, a planejar uma solução para um problema antes de sua execução e a controlar seu próprio comportamento. [...] As funções cognitivas e comunicativas da linguagem tornam-se, então, a base de uma forma nova e superior de atividade nas crianças, distinguindo-as dos animais.

E no que diz respeito à criança surda, segundo Goldfeld (2001), esta poderá apresentar atrasos em relação à apropriação da linguagem, uma vez que o processo depende do meio social, das interações comunicativas nele promovidas, e de uma língua comum entre a criança e seus pais.

Ao considerar que de 90 a 95% das crianças surdas nascem em famílias ouvintes, falantes da língua oral, à qual o filho surdo não tem acesso naturalmente, não há este compartilhamento de uma língua comum entre eles, o que explica esta defasagem. Trata-se de uma situação que tem se perpetuado, na medida em que os pais, em sua maioria, desconhecem as implicações sociais, linguísticas, educacionais e emocionais da surdez. Outro motivo decorre dos históricos preconceitos que ainda persistem em relação a esses sujeitos e sua língua; com isso, são privados do acesso a Língua de Sinais. Em razão dos fatores relacionados, também não consideram a perspectiva de aprender Libras para que possam se comunicar fluentemente com seus filhos, optando apenas pela oralização (terapia da fala e da leitura labial), pelo uso de tecnologias, como as próteses auditivas e, mais recentemente, o implante coclear (ANDREIS-WITKOSKI, 2017), um dispositivo eletrônico colocado cirurgicamente na zona craniana posterior do pavilhão auricular, que tem como função transformar os sons e ruídos captados do ambiente em energia elétrica, desenvolvendo a sensação auditiva no implantado (COELHO, MENDES, 2014).

Considerando-se que os esquemas representacionais são construídos na criança pela interação com o meio físico, tais esquemas permitem a elaboração de outros comunicativos que ocorrem por meio da interação social. Em decorrência da surdez, a criança surda, ao não conseguir acessar de forma natural a língua oral, também não consegue estabelecer as mesmas trocas que a ouvinte naturalmente tece e, portanto, apresenta prejuízos nos processos referidos. Dessa forma, reitera-se que a única possibilidade de a criança surda obter o mesmo nível de desenvolvimento que a ouvinte é tendo acesso a uma língua plena, no caso, a Língua de Sinais, e a um ambiente linguístico bilíngue familiar, escolar e social, promovido para sua interação.

Vygotsky (1989) vincula a linguagem à própria constituição da subjetividade humana e, sob essa perspectiva, ressalta-se a dimensão dos prejuízos que a falta de uma língua plena implica à criança surda, inviabilizando que possa, tal qual a criança ouvinte, vivenciar os processos de apropriação da linguagem. Vygotsky (1989) atribui à linguagem papel central no desenvolvimento psicológico, pois é por meio dela que o sujeito se insere na sociedade, internaliza os conhecimentos e os modos de ação, bem como organiza e estrutura seu pensamento. A inter-relação do homem com o mundo, segundo Vygotsky (1989), ocorre pela linguagem, e os signos são considerados os mediadores, uma vez que são elaborados num contexto social da cultura humana, como a expressão de significados, frutos da necessidade de organização social. Assim, é nessa organização que evoluem e transformam-se. Por conseguinte, é a partir dos sistemas semióticos que ocorre a interação do sujeito com o mundo, quando então as funções mentais elementares se transformam. Sendo assim, observa-se que:

[...] o diálogo impulsiona a linguagem, a mente; mas depois que esta é impulsionada, desenvolvemos um novo poder, a “fala interna”, e esta que é imprescindível para nosso desenvolvimento mais amplo, nosso pensamento [...] escreveu Vygotsky, [...] “Nós somos nossa linguagem”, costuma-se dizer; mas nossa verdadeira linguagem, nossa verdadeira identidade, reside na fala interna, no incessante fluxo e geração de significado que constitui a mente individual. É por meio da fala interna que as crianças desenvolvem seus próprios conceitos e significados. (SACKS, 1998, p. 84- 85).

Cabe destacar, contudo, que as crianças surdas, especialmente no caso da surdez pré-linguística, se não lhes for propiciado o acesso à Língua de Sinais, não terão a possibilidade de estabelecer um diálogo pleno, logo, isto repercutirá negativamente no desenvolvimento da sua linguagem. Dessa forma, reafirma-se que elas têm como língua natural a Língua de Sinais: “a única constituída de uma modalidade viso-espacial que lhes permite o livre trânsito entre interlocutores, impulsionando o desenvolvimento da linguagem, da mente, da sua ‘fala interna’” (ANDREIS-WITKOSKI; BAIBICH-FARIA, 2010, p. 341).

Ilustra-se a importância da Língua de Sinais para esses sujeitos, resgatando-se as implicações que a ausência de uma língua plena acarreta à criança surda e reproduzindo-se o depoimento da atriz surda Laborit (1994, p. 51-52), no qual afirma que sequer a capacidade de nomear ela possuía antes de conhecer a Língua de Sinais e foi somente ao acessá-la que, pela primeira vez, ela afirma ter compreendido:

[...] que podemos dar um nome às pessoas. Era formidável. Não sabia que havia nomes em minha família, a não ser o de papai e de mamãe. Encontrava-me com as pessoas [...] mas elas não tinham nenhum nome para mim. Nenhuma definição.

Em seguida, relembra sua surpresa ao descobrir que as pessoas tinham nomes, que as diferenciavam umas das outras, e ao reconhecer-se por um nome próprio:

[...] eu me chamava Emmanuelle. Compreendia, por fim, que tinha uma identidade. Eu: Emmanuelle. [...] Foi um renascimento, a vida começou mais uma vez. [...] A partir de então, somos seres humanos capazes de nos comunicar, capazes de nos construir. [...] Pouco a pouco, arrumei as coisas em minha cabeça e comecei a ter um pensamento, uma reflexão organizada. A comunicar-me.

2. Na família: relação com a Língua Portuguesa

O papel da família na apropriação da linguagem é fundamental, visto que se trata do primeiro grupo social de qualquer sujeito. É no âmbito das primeiras relações estabelecidas no ambiente familiar que os sujeitos se constituem, pois nessas interações é onde primeiramente é mediada a relação entre a criança e o mundo. Ressalta-se que a linguagem exerce papel preponderante na constituição dos sujeitos, na medida em que “é nela, por ela e com ela que [...] nos tornamos ‘humanos’” (LACERDA, 1998, p. 38-39).

É importante reconhecer que o nascimento de uma criança surda traz à tona uma nova realidade familiar, uma vez que essa criança não tem o acesso de forma natural à língua oral, que é usualmente a única compartilhada até então nesse ambiente. Situações como a relatada por uma mãe que conta ter desmaiado diante do diagnóstico de surdez de sua filha (ANDREIS-WITKOSKI; SANTOS, 2013), apontam para o quanto pode ser impactante o deparar-se com o mundo surdo, desconhecido pela maioria dos pais ouvintes que têm filhos surdos.

Entretanto, apesar de os pais e demais familiares não estarem preparados para tal realidade, sabe-se que o desenvolvimento amplo da criança dependerá, em muito, das interações que se estabelecem nesse contexto, visto que é o primeiro vínculo social de um indivíduo. Isto posto, cabe situar que é indiscutível o papel das instituições sociais e das interações entre os adultos que cuidam da criança surda, para seu processo de apropriação e desenvolvimento da linguagem e dos demais aspectos psicossociais. Por conseguinte, é de fundamental importância a família aceitar a Língua de Sinais, promovendo o acesso ao seu filho surdo à Libras, assim como criando um ambiente bilíngue no contexto familiar para que haja interação.

Sob essa perspectiva, observa-se que a integração da família é base para um processo de apoio ao sujeito surdo. E essa integração precisa se instaurar por meio de interações afetivas, de um diagnóstico precoce da surdez e do estabelecimento de interações efetivas entre o surdo e sua família, o mais precocemente possível (DESSEN, 1994). A aprendizagem do surdo exigirá a participação comprometida dos pais, conforme pondera Castro (1999), ao destacar que cabe a esses oferecer suporte para a socialização da criança no mundo exterior, a fim de que a criança possa melhor compreendê-lo e entender suas diferenças.

Porém, o que acontece na maioria dos casos é que os pais continuam insistindo apenas na oralidade de seus filhos, direcionando todos os investimentos na promoção da aprendizagem da língua oral. Além de esta ser exaustivamente treinada na terapia da fala e da leitura labial, é usual os pais paralelamente reforçarem as práticas orais em casa. Assim, muitos deles, na busca de que a criança surda aprenda a Língua Portuguesa, reproduzem a história desta mãe, relatada por Andreis-Witkoski e Santos (2013, p. 50-51):

[...] quando a filha era pequena, ela e seu marido se empenhavam para lhe ensinar palavras novas, enfocando que houve um tempo em que tudo na casa tinha uma etiqueta identificadora (mesa, cadeira, etc.). E quando ela conseguia aprender uma nova palavra, era uma imensa alegria.

Vale destacar que este estado de euforia diante do fato de um filho surdo conseguir falar uma nova palavra é usual entre os pais que direcionam todos os seus investimentos financeiros, emocionais e de tempo na oralização de seus filhos. Contudo, enquanto comemora-se a aprendizagem na pronúncia de algumas palavras, desconsidera-se, em especial, três pontos centrais.

O primeiro é o fato de que conseguir falar uma palavra não significa que a criança também compreendeu o seu significado. Sobre esta questão, utiliza-se o depoimento da surda Doutora Karen Strobel (2008a, p. 14; 16), ao relatar sua experiência com a oralização, afirmando que

[...] aprendi a falar, mas não sabia me comunicar adequadamente, só ficava repetindo as palavras, igual a um papagaio, sem entender seus significados, tudo mecânico e sem emoções. [...]eu não compreendia o que acontecia ao meu redor no dia a dia, mas eu era muito curiosa e queria saber o “porquê” de tudo e não recebia respostas, reprimia tudo dentro de mim e ficava muito agitada.

O segundo aspecto relevante, desconsiderado quando se opta exclusivamente pela oralização dos seus filhos surdos, é de que, muitas vezes, apesar das horas intermináveis de terapia da fala, a sua produção oral resultante, normalmente, é compreendida apenas pelas pessoas habituadas a escutar uma pessoa surda (Duffy apud QUADROS, 1997).

O terceiro aspecto refere-se ao processo de aprendizagem da língua oral. Como esse aprendizado ocorre lentamente, a criança surda, no decorrer desse processo, deixa de ter acesso a uma língua plena por meio da qual possa se expressar, acessar informações na integridade e tecer interações com qualidade. Uma situação que repercute negativamente no desenvolvimento da sua linguagem.

Nessa perspectiva, destaca-se que aos surdos, historicamente, são atribuídos atrasos cognitivos, sempre se desconsiderando o fato de que não tiveram as mesmas condições dadas aos ouvintes para a apropriação da linguagem e de seus desenvolvimentos correlatos. Skliar (2000, p. 117) observa que a resposta à pergunta: “Por que os surdos não alcançam o pensamento abstrato?”, sustenta-se:

[...] implicitamente na relação audição-pensamento e deixa de lado variáveis ou condições de desenvolvimento fundamentais, como são o tipo de experiência educativa dos sujeitos, a qualidade das interações comunicativas e sociais em que participaram desde tenra idade, a natureza da representação social da surdez de uma sociedade determinada e a existência da língua de sinais na família e na comunidade de ouvintes em que vive a criança etc..

Desse modo, sem uma língua que possa interagir com o mundo, continuam-se reproduzindo situações, como a vivência descrita pela pesquisadora surda, Dra. Karen Strobel (2008b, p. 40):

Uma vez a empregada doméstica estava lavando o quintal no fundo de casa e eu ficava sentada observando a água suja de lama e sabão correndo até o bueiro. No meio desta sujeira estava um bicho estranho, de mais ou menos uns seis centímetros, que estava morto. Assustei-me porque o associava com o bicho que vi na televisão noutro dia, jacaré enorme que comia as pessoas e tive muitas noites de insônia com medo da existência deste bicho no nosso quintal e que viria para me pegar e me comer. Só agora eu entendo que não era jacaré e sim, simplesmente, uma lagartixa. Não havia ninguém que me informasse sobre isso.

Os prejuízos de se investir unicamente na oralização da criança surda podem ser ilustrados com história da mãe de uma criança surda, citada por Andreis-Witkoski e Santos (2013), que apesar de ser extremamente religiosa nunca conseguiu fazê-la compreender a história bíblica. Apesar de toda a dedicação familiar, ela acabou por repetir a história de inúmeros surdos, os quais diante da privação da Libras para mediar relações e conhecimentos, sequer conseguiu construir uma ideia elaborada de Deus, na medida em que, segundo o relatado por estes sujeitos “os familiares explicavam que Deus morava no céu, mas eles olhavam para cima e não viam nada além de nuvens” (DALCIN, 2006, p. 202).

É fulcral considerar que, conforme Vygotsky (1989), a fala necessita ser utilizada em sua significação (fala lógica) e não meramente pela repetição de sons isolados. Dessa forma, reitera-se que o investimento apenas na oralização, com o treinamento da terapia da fala, no ensino da Língua Portuguesa, focalizando na aprendizagem de palavras, na maioria das vezes não compreendidas, conduz a resultados geralmente decepcionantes.

3. Na família: a relação com a Língua Sinais

Ainda na atualidade, aceita-se que a modalidade de comunicação linguística que identifica os seres humanos, diferenciando-os dos animais, é a oral. Esta associação é tão forte que muitos surdos fazem referência ao fato de que, ao se comunicarem por meio da Libras, em um ambiente predominantemente ocupado por ouvintes, o uso da Língua de Sinais é referido como “coisa de macaco” ((ANDREIS-WITKOSKI, 2009).

Urge desconstruir esse estigma em relação à Línguas de Sinais, de forma a reconhecer-se que, retomando Saussure, “a língua é uma convenção e a natureza do signo convencional é indiferente. A questão do aparelho vocal se revela, pois, secundária no problema da linguagem” (1995, p. 17). Saussure cita Whitney, ao se referir à questão articulatório-perceptual:

[...] para Whitney, que considera a língua uma instituição social da mesma espécie que todas as outras, é por acaso e por simples razões de comodidade que nos servimos do aparelho vocal como instrumento da língua; os homens poderiam também ter escolhido o gesto e empregar imagens visuais em lugar de imagens acústicas (SAUSSURE, 1995, p.17).

É importante desnaturalizar o pressuposto de que os seres humanos, necessariamente precisam se comunicar usando a modalidade oral. Stokoe (1978), desde suas primeiras pesquisas, provou que as Línguas de Sinais se constituem legitimamente como uma língua genuína, da mesma qualidade que as línguas orais. Essa perspectiva é fundamental para que seja possível romper com os preconceitos, que ainda perduram, em relação às Línguas de Sinais, a fim de estimular os pais a usá-las com seus filhos surdos.

Urge sensibilizar a família ouvinte para a adoção da Língua de Sinais, especialmente ao se considerar que o ambiente familiar é espaço propício à aprendizagem da Libras, à valorização das diferenças, ao desenvolvimento da criança surda e sua aceitação. Nessa perspectiva, reitera-se que somente pelo acesso a uma língua plena, que no caso das crianças surdas é a Língua de Sinais, de modalidade visual, e não havendo comprometimento sensorial do sentido da visão, é que essas crianças poderão se relacionar de forma dialógica, o que afetará diretamente o desenvolvimento de suas capacidades cognitivas, de abstração e da construção de sua individualidade.

Vygotsky (1989, p. 44) reafirma o quanto a linguagem determina o desenvolvimento do pensamento, quando observa que “o crescimento intelectual da criança depende do domínio dos meios sociais, isto é, da linguagem”. Nesse sentido, observa-se que os filhos surdos de pais surdos, por terem desde a tenra idade o acesso à Língua de Sinais, compartilhando de um ambiente linguístico comum, não apresentam atraso de linguagem e, por conseguinte, também nenhuma lentidão na aprendizagem, tendo um pleno desenvolvimento. Duffu, citado por Quadros (1997), cita estudos que avaliam o desempenho escolar de crianças surdas, filhas de pais surdos, e apontam que essas têm melhor desempenho acadêmico do que as crianças surdas filhas de pais ouvintes.

Os mesmos resultados são apontados por Quadros (1997), ao demostrar que as crianças surdas, filhas de pais surdos, por terem acesso precoce a Língua de Sinais, apresentam uma qualidade superior nas produções escritas e de leitura em comparação às que têm pais ouvintes e não têm acesso à língua visual desde a tenra idade. Também Skliar (2000, p. 141) concorda com esses resultados, confirmando que filhos surdos de pais que também o são “apresentam melhores níveis acadêmicos, melhores habilidades para a aprendizagem da língua oral e escrita, níveis de leitura semelhantes aos do ouvinte, uma identidade equilibrada, e não apresentam os problemas sociais e afetivos próprios dos filhos surdos de pais ouvintes”.

Em face de tal constatação, é necessário pontuar que as famílias precisam de um comprometimento com a Língua de Sinais, ou seja, não basta a criança apropriar-se dela, mas também a família, da mesma forma, precisa aprender a língua e interagir por meio dela. AUTOR (2017) destaca a importância de os componentes do grupo familiar aprenderem a Língua de Sinais, pois é por meio da comunicação que a criança surda e a família criam laços emocionais, afetivos e sociais, fazendo o ambiente familiar mais acolhedor e seguro.

Segundo Quadros e Schmiedt (2006), o contato com a Língua de Sinais, desde a primeira infância, é primordial para o desenvolvimento social, cultural e intelectual, das crianças surdas, potencializando suas possibilidades de inserção no mundo da linguagem. Essas autoras também ressaltam que, por intermédio de pesquisas com crianças surdas que utilizaram a Língua de Sinais precocemente, foi possível constatar que elas não apresentaram prejuízo quanto ao desenvolvimento da linguagem. Dessa forma, quanto mais cedo a Língua de Sinais for aceita e utilizada como meio de interação entre família e criança surda, menores serão os prejuízos de seu desenvolvimento.

4. Escola inclusiva ou bilíngue para surdos

A escola, de modo geral, constitui-se no espaço onde ocorrem os primeiros contatos sistemáticos do sujeito surdo com a Língua Portuguesa escrita. Conforme reflete Fernandes (2006), é neste ambiente, em decorrência das múltiplas vivências que se operam ao longo da vida escolar, que a escrita passará a ter sentido. Observa-se que, diferente dos ouvintes, para a criança surda a sua primeira língua é a Língua de Sinais, enquanto a Língua Portuguesa é a segunda língua. É relevante destacar que o acesso à Língua Portuguesa para a criança surda também é restrito, em comparação à criança que ouve, pois a criança surda não consegue acessá-la naturalmente e não está permanentemente em contato com ela, como ocorre com as ouvintes, que a têm como meio de comunicação, expressão e informação.

Dessa forma, em um contexto de escola inclusiva, evidencia-se o fato de que o aluno surdo, que passou apenas pelo processo de oralização, não apresente o mesmo nível de conhecimentos que seu colega ouvinte. Também o seu processo de aprendizagem da Língua Portuguesa não ocorre pela mesma metodologia fonocêntrica utilizada na escola de ouvintes, e sim por meio de um processo visual. Em uma escola inclusiva, que segue uma metodologia de ensino voltado para ouvintes, aprender a Língua Portuguesa constitui enorme desafio para a criança surda. É usual surdos adultos fazerem referências a eventos constrangedores, sentimentos de humilhação e vergonha, diante de situações vivenciadas na escola, na medida em que esta, de forma inadvertida, espera que seus alunos surdos possam dominar e compreender a estrutura da Língua Portuguesa escrita, ainda que submetidos a uma metodologia utilizada para ouvintes, a qual não contempla as singularidades do aluno surdo.

Nessas condições, ressalta-se que o processo de aprendizagem da escrita da Língua Portuguesa pelo aluno surdo geralmente não é significativo, dada a não percepção do mecanismo de relação letra-som, que é a adotada na escola regular. Desse modo, as crianças surdas, ao não compreenderem a lógica fonocêntrica, constrangidas diante de uma turma majoritariamente ouvinte, começam a copiar o desenho de letras e palavras, simulando a aprendizagem. E essa prática se perpetua ao longo de sua vida escolar. Muitas vezes, o professor acaba acomodando-se com os resultados apresentados, sob a forma de meras cópias (FERNANDES, 2006).

Submeter o aluno surdo ao mesmo método de ensino utilizado para ouvintes, irá gerar, certamente, prejuízos a essa criança, pois suas ações em sala de aula irão se resumir a copiar conteúdos. Essa situação é explicitada pelos próprios surdos em depoimentos como os que seguem:

Inclusão é um monte de ouvinte e um surdo. Você vê, mas não entende, é só copiar, na prova não sabe, não adianta. Eu acho que ouvinte tem dó de surdo, influência ruim (ANDREIS-WITKOSKI, 2012, p. 42, grifos da autora).
O ensino do surdo precisa adaptar, método ouvinte é próprio de ouvinte, do surdo é diferente, exemplo o surdo precisa um modelo surdo, para ele copiar, e sentir que pode, que é capaz, porque na verdade ouvinte não tem a mesma qualidade, o surdo tem expressividade, é natural do surdo é próprio do surdo, é diferente, consegue mediar, trocar (ANDREIS-WITKOSKI, 2012, p. 101, grifos da autora).

Em decorrência dos fatores referidos, esses surdos defendem, majoritariamente, o direito de estudarem em escolas bilíngues, pois para eles, em função de suas diferenças linguísticas e culturais, a inclusão do surdo é um conceito diferenciado dos demais grupos. Andreis-Witkoski (2012, p.106) apresenta outros depoimentos que foram recolhidos de alunos surdos:

Porque exemplo cadeirante é ouvinte tem som, já surdo não ouve, o som não chega, importante para surdo é visual. Exemplo ouvinte tem voz, surdo é expressão é visual, é próprio de cada grupo: ouvinte e surdo. Por isso, ouvinte cadeirante, deficiente intelectual, cego é diferente, porque a primeira coisa é a língua (grifos da autora).

Não concordo com inclusão porque professor não sabe explicar e também tem só a influência do ouvinte, só perde. Inclusão surdos diferente, porque língua é diferente (grifos da autora).

Minha opinião inclusão não é bom. Porque se tem inclusão, como professor vai saber planejar para ensinar surdo? E surdo precisa saber Libras, onde vai aprender? [...] Surdo é diferente porque língua diferente, quando for para faculdade aí pode inclusão, antes não. Não consegue aprender, pequeno não consegue, precisa professor especializado, que sabe ensinar palavras, é outro ensino, é outro método. É diferente o ouvinte, inclusão de surdo é diferente de outros porque surdo diferente de ouvinte (grifos da autora).

Portanto, em decorrência da singularidade de ser surdo, pela qual a apropriação do mundo se dá visualmente, de maneira a ser “vivida, sentida e significada de uma forma única, pois toda a construção de mundo se dá a partir do visual.” (GOMES, 2011, p. 128), entende-se o quanto o ensino em ambientes inclusivos deveria, necessariamente, ser mediado pela Libras, além de pautar-se por uma pedagogia visual.

Lacerda (2013) observa que os estudantes surdos estão imersos em um mundo visual, sendo fundamental, portanto, que os conteúdos escolares sejam apresentados com o uso de toda a potencialidade visual mediada pela Libras. Por exemplo, o uso de uma fotografia para o ensino de determinado conteúdo significa, de acordo com Lacerda (2013, p. 187), que “uma imagem pode evocar a compreensão de vários elementos de um determinado tempo histórico e, nesse sentido, evocar significado sem a presença de qualquer texto escrito”.

Importante reiterar que a escola bilíngue para surdos constitui-se como um ideal defendido pelos próprios sujeitos surdos (ANDREIS-WITKOSKI, 2012), na medida em que somente nessa escola todas as interações no ambiente escolar se realizam por meio da língua natural dos surdos, a Língua de Sinais, favorecendo o seu processo de apropriação da linguagem e, consequentemente, os desenvolvimentos associados a essa língua.

Considerações finais

Ao discutir, sob uma perspectiva sócio-histórica, as questões da especificidade linguística dos sujeitos surdos, levando em conta as influências das instituições sociais, pode-se considerar que o seio familiar é o primeiro lugar onde se inicia a apropriação da linguagem. Nesta perspectiva, reforça-se que as pessoas se constituem por meio das interações que ocorrem entre si e os outros que participam desse processo. Assim, são as mediações e as interações com o outro que oportunizam à criança adquirir a linguagem o mais cedo possível (VYGOTSKY, 1989; 2003). Desta feita, faz-se imprescindível que a família propicie à criança surda o acesso à Língua de Sinais, assim como ela própria, a família, se torne bilíngue, na medida em que esta é a única língua capaz de suprir todas as suas necessidades de comunicação e fomentar o mesmo desenvolvimento que ocorre com as crianças ouvintes, em decorrência de terem acesso a uma língua compartilhada em suas interações familiares e sociais.

Assim como a família, destaca-se também a importância da escola em promover interações de qualidade com esse alunado, reafirmando-se que essas só ocorrerão se mediadas pela Libras, uma vez que, em função da surdez, esses alunos não conseguem acessar de forma natural a língua oral. Em decorrência desta singularidade linguística, majoritariamente os surdos defendem o direito de uma educação bilíngue em escolas para surdos, uma vez que nessas instituições o alunado tem a possiblidade de interagir com todos os interlocutores nesse espaço de uso da Língua de Sinais.

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