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O desenvolvimento da literacia na criança surda: Uma abordagem centrada na família para uma intervenção precoce
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Publicado em 2009
Medi@ções – Revista OnLine da Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Setúbal, Vol. 1 - nº 1
Maria José Duarte Freire
  Artigo disponível em versão PDF para utilizadores registados
Resumo

Os pais de uma criança surda devem estar conscientes da importância de oferecer ao seu filho ou filha surdos um ambiente favorável que lhes garanta um total desenvolvimento cognitivo, linguístico, social e emocional. Os pais devem ter um bom acesso a informação e aconselhamento que os prepare para o desafio que constitui educar uma criança surda. A comunicação é essencial para qualquer ser humano e a base do desenvolvimento linguístico e cognitivo. Usar a língua gestual à volta da criança surda e com ela, sem o intuito de a ensinar, mas usando-a como estratégia de comunicação, irá proporcionar à criança surda um instrumento de acesso à linguagem e ao conhecimento que lhe permitirão desenvolver a sua literacia.

Introdução

O desenvolvimento da literacia implica, à partida, dois pressupostos básicos: o domínio de uma língua; e, conhecimentos sobre o mundo que nos rodeia.

O contacto com falantes de uma língua, permite à criança proceder à sua aquisição de modo natural e sem esforço. Segundo Stewart e Clarke (2003:29-32) os passos básicos para a aquisição natural de uma língua são: acesso à língua; exposição precoce à língua; contac-to com modelos eficientes da língua oral e/ou gestual; interacção com outras crianças. Quando alguma destas condições não está pre-sente as crianças enfrentam grandes dificuldades na aquisição de uma língua.

Os conhecimentos gerais sobre o mundo encontram-se habitualmen-te ao alcance das crianças desde a sua nascença no contacto com os outros humanos que a rodeiam: por meio dos sentidos, mas sobretu-do através da audição. Os adultos que rodeiam a criança surda devem ser consciencializados deste facto, pois a criança com surdez severa ou profunda não beneficia deste input de informação auditiva, que informa e complementa tudo aquilo que vê, não sendo, ainda, de desprezar toda a informação auditiva que se refere a factos, aconte-cimentos ou conceitos, que não estão presentes visualmente e que são veiculados exclusivamente pela via da oralidade.

Os pais de crianças surdas sofrem um choque emocional profundo ao tomarem conhecimento da condição física da sua criança surda, mas, passado esse momento inicial, deverão ser apoiados no sentido de iniciarem de imediato uma intervenção precoce conducente à criação de um ambiente facilitador do seu total desenvolvimento linguístico, cognitivo e sócio-emocional.

É importante alertar os pais e a família de que a falta deste ambiente propício e acolhedor do novo ser poderá constituir, isso sim, um fac-tor causador de deficiência e de problemas de desenvolvimento lin-guístico e cognitivo. Os serviços de saúde deveriam proporcionar o devido aconselhamento aos pais de crianças surdas: a par do acom-panhamento médico, que se ocupa dos possíveis tratamentos a seguir ou do devido diagnóstico para o uso de aparelhos que recuperem ou melhorem os resíduos auditivos existentes, é fundamental que exista um aconselhamento aos pais que tenha em conta os outros aspectos não clínicos da surdez, nomeadamente, informação sobre o seu desenvolvimento linguístico, cognitivo, bem como informação sobre a comunidade surda, a sua língua e a sua cultura, que fazem parte do legado histórico dessa criança surda. Infelizmente, esta atitude é muito pouco frequente entre os meios médicos. Os pais deverão, mesmo assim, procurar informação em diferentes fontes: junto da comunidade surda, nas associações de surdos e nas associações de pais, tarefa actualmente facilitada pelo desenvolvimento dos meios de comunicação tecnológicos existentes, designadamente através de buscas na Internet.

Os pais necessitam de apoio, aconselhamento e encaminhamento para encararem a falta de audição do seu filho/a de modo natural, sem angústias, no sentido de lhe proporcionarem as condições para o seu crescimento e desenvolvimento, à semelhança do que fariam com qualquer outro filho. A comunicação entre os pais e a sua crian-ça surda deve ter início de imediato, para isso é importante que os pais e a restante família sejam incentivados, desde logo, a aprender a língua gestual portuguesa para assim comunicarem e conversarem, brincando, com o seu bebé surdo, de um modo natural e totalmente acessível para ele desde o início, sem preconceitos e conscientes que assim estão contribuindo para o seu desenvolvimento global.

Mesmo que o bebé venha a recuperar audição, essa comunicação já estabelecida só terá frutos positivos, pois permitiu estabelecer uma ligação mais profunda entre pais e filho/a, e, caso a recuperação da audição não seja satisfatória, em termos de uma aquisição natural da língua oral, o uso da língua gestual, de modo precoce, permitiu esta-belecer na criança as bases linguísticas para a aquisição da língua dos pais, sobretudo através da leitura e da escrita e, na medida do possível, da língua falada. O enfoque na leitura e na escrita justifica-se pelo facto de ser este o meio mais acessível à criança surda, como expressão visual da língua do seu país, e fundamental para o seu percurso académico.

Serão abordados de seguida alguns conceitos importantes a conside-rar no desenvolvimento das crianças surdas e, na parte final deste artigo, serão sugeridas algumas estratégias a desenvolver para o enriquecimento das capacidades de compreensão da leitura e da escrita por crianças surdas.

1. Diferentes tipos de surdez e diferentes implicações

Os diferentes graus de surdez que podem afectar uma criança ou um jovem implicam diferentes dificuldades no acesso à comunicação, com efeitos mais ou menos graves no seu desenvolvimento linguísti-co e cognitivo. Caso a surdez seja ligeira, os efeitos sentidos no quo-tidiano não são muito significativos, mas nos casos em que a perda auditiva é maior aumentam os obstáculos a uma percepção inteligí-vel da fala e existe um impedimento grave na aquisição da primeira língua.

A perda auditiva poderá ser considerada ligeira quando se situa entre 25 e 40 dB; moderada entre 41 e 70 dB; severa entre 71 e 95 dB; e, profunda se estiver acima dos 95 dB 1. O diagnóstico tardio da sur-dez agrava as consequências no desenvolvimento das crianças que assim perdem momentos preciosos e muitas vezes irrecuperáveis. Não existe ainda, no nosso país, um serviço sistemático de acompa-nhamento dos recém-nascidos para despistagem de doenças ou defi-ciências que permitam uma intervenção atempada e adequada. Cabe aos médicos-pediatras fazer essa despistagem, todavia, por vezes, verificam-se atrasos no diagnóstico, com os consequentes prejuízos.

Mesmo tendo em conta o recurso a próteses auditivas, a surdez seve-ra e a surdez profunda impedem uma audição inteligível e completa da fala, o que impede uma aquisição natural da língua oral pelas crianças surdas; registando-se as dificuldades de desenvolvimento mais significativas nos casos de surdez congénita ou pré-linguística. (Almeida, 2007:20)

Para aprender uma língua oral a criança precisa de ouvir uma quan-tidade suficiente de exemplos dessa língua para a partir deles apreender, de modo natural, as suas regras de funcionamento. Uma criança surda ou com audição deficiente não é exposta a um número de exemplos suficiente da língua para assimilar essas regras. Nesse caso, a língua oral deve ser a sua segunda língua, e a língua gestual a sua primeira porque lhe está inteiramente acessível.

2. Desenvolvimento linguístico e cognitivo

A relação entre linguagem e pensamento é igualmente muito discuti-da no processo de desenvolvimento da criança. Vygotsky (2001: 396) estuda as diferentes fases de linguagem que a criança atravessa e a sua relação com o intelecto:

Também no estágio inicial do desenvolvimento da criança, poderíamos, sem dúvida, constatar a existência de um estágio pré-intelectual no processo de formação da linguagem e de um estágio pré-linguagem no desenvolvimento do pensamento. O pensamento e a palavra não estão ligados entre si por um vín-culo primário. Este surge, modifica-se e amplia-se no processo do próprio desenvolvimento do pensamento e da palavra.

No caso das crianças surdas a falta de acesso a uma língua vai criar dificuldades acrescidas à sua capacidade de utilizar o pensamento verbal. Amaral (1993: 28) refere, a este propósito, a importância da língua gestual para o desenvolvimento do pensamento:

Assim sendo a língua gestual, enquanto língua, estabelece uma relação dinâmica e dialéctica com o pensamento e vai permitir o acesso às ideias, ao conhecimento, ao discurso lógi-co e criativo, em suma, à plena apreensão do mundo.
Efectivamente o papel da língua não é apenas o de permitir dizer aos outros o que pensamos mas, acima de tudo, dizermos a nós mesmos o que pensamos; só desta forma se estabelece uma relação criativa – linguagem e pensamento – que se vai reflectir no total desenvolvimento cognitivo.
Normalmente o que tem acontecido com os surdos profundos congénitos é que se têm visto privados do conhecimento e do consequente desenvolvimento cognitivo, devido à ausência de qualquer tipo de linguagem que lhes permita a comunicação.

Para que as crianças e jovens surdos possam ter um verdadeiro desenvolvimento cognitivo e emocional é necessário que façam uma aquisição natural da sua primeira língua, indubitavelmente, a língua gestual. Amaral (1993: 27) acentua:

(...) a dificuldade de ser surdo numa sociedade que teima em generalizar os seus próprios padrões a todos sem o respeito e a atenção devidos à diferença. E a diferença entre um surdo e um ouvinte reside tão só na ausência ou existência do sentido da audição, respectivamente; e desta “pequena” diferença resulta que os que são surdos não ouvem, logo não têm acesso à língua oral; se quisermos especificar melhor acrescentare-mos que a língua oral não pode ser a língua natural do surdo profundo porque a privação ou danificação do órgão da audi-ção não lhe permite a sua apreensão.

Em Portugal, outros estudiosos se debruçam, ainda, sobre esta temá-tica, M. R. Delgado-Martins (1996) diz:

Esta hipótese de aquisição e desenvolvimento da língua ges-tual como forma estruturadora da cognição e da linguagem conduz a uma hipótese de bilinguismo precoce da criança sur-da em que a língua gestual é a língua materna e a língua por-tuguesa a língua segunda.

Os efeitos das dificuldades de desenvolvimento linguístico e cogni-tivo reflectem-se nos baixos graus de literacia que estas crianças e jovens conseguem atingir, repercutindo-se no seu percurso académi-co e profissional. Muitos jovens surdos que frequentam escolas onde não existe o ensino bilingue e bicultural, ou onde existem situações de bilinguismo intermédias e pouco satisfatórias – situação ainda maioritária nas escolas portuguesas – sentem-se frustrados e desmo-tivados, registando-se uma elevada percentagem de abandono esco-lar no final da escolaridade obrigatória. Pelo contrário, nas escolas onde os alunos surdos sentem que a sua língua, a língua gestual, é valorizada, respeitada, e reconhecida como sua língua materna e língua de ensino das matérias curriculares, bem como disciplina cur-ricular, por si, o sucesso escolar e a vontade de prosseguir estudos são elevados. (Lane, Hoffmeister & Bahan 1996: 298-299)

3. Educação Bilingue e bicultural

Para Jokinen (1999: 108) a visão sociocultural da surdez é a mais precisa, pois, em contraponto com a visão médica, que sobrevaloriza a perda de audição e suas consequências, enfatiza os aspectos positi-vos da surdez: “experimentados pelos próprios surdos como a língua única, a cultura e a comunidade com uma história rica. (…) A visão sociocultural sobre a surdez está alinhada com princípios existentes de direitos humanos, recomendações da ONU como as Regras de Padrões e a Declaração de Salamanca e acima de tudo alinhada com a visão sobre o ser humano como uma pessoa igual, mas diferente.”

Vários investigadores que se debruçam sobre a questão da educação das crianças e jovens surdos, defendem que a melhor abordagem ao ensino da língua do país é a do formato de segunda língua, com base na primeira língua, para eles natural e de fácil aquisição, a língua gestual. A este propósito Delgado-Martins (1997: 32) diz que:

Na primeira fase, a da aquisição da linguagem, na ausência da linguagem verbal, as crianças surdas devem inte-riorizar a língua gestual portuguesa como língua materna, isto é, a língua que, como vimos, é adquirida, naturalmente, pelo simples contacto com adultos e crianças surdos que sejam “nativos” de LGP. Assim, as crianças surdas, no contacto com um meio em que se use a LGP, desenvolvem o seu sistema linguístico e cognitivo, na interacção comunicativa com os que a rodeiam, mantêm uma vida afectiva e social “normal” (...) Neste contexto, a escrita deixa de se associar ao oral e passa a estabelecer uma relação com o gesto, para «fazer sentido».

Tendo em conta que cerca de 95% das crianças surdas são filhas de pais ouvintes as condições naturais de aquisição de uma língua ges-tual ficam grandemente comprometidas. Para colmatar esta dificul-dade há a necessidade de sensibilizar os pais e as famílias, assim como a classe médica, que muitas vezes constitui o primeiro contac-to dos pais com a realidade da surdez, para a importância do contacto precoce das crianças surdas com a língua gestual, independente-mente dos esforços médicos que possam ser feitos em paralelo para a recuperação da audição.

A aquisição da língua gestual só poderá beneficiar estas crianças, porque mesmo que venham a recuperar alguma audição quando isso acontecer já terão perdido fases fundamentais de aquisição da lin-guagem, de difícil ou impossível recuperação. Mahshie (1997), no seu artigo “A First Language: Whose Choice Is It?, alerta os pais para este risco:

(...) I suggest that whatever hopes parents attach to this notion of residual hearing be accompanied by a realistic perspective about the real outcomes and costs for even the most successful of deaf speakers, and that hopeful advice also be tempered with appropriate alarm that—due to our inability to predict--many children are left with little or no access to language dur-ing what often becomes a long-term evaluation of their poten-tial for using spoken language.

Esta autora descreve o cenário do que sucede na Dinamarca e na Suécia 2, onde se aceita o direito da criança surda adquirir uma primeira língua naturalmente e atempadamente. A língua que não é adquirida naturalmente será aprendida mais tarde como segunda língua. Os pais, em vez de serem confrontados com opções que se auto-excluem, são encaminhados para um modelo que inclui todas as possibilidades: língua gestual, língua do país escrita e falada – nas fases desenvolvimentais adequadas. Este modelo reconhece a importância de se deixar a criança surda “ser criança”: aspecto que muitas vezes é esquecido tanto pelos pais, como pelos educadores na sua ânsia de transformar esta criança numa “criança como as outras”.

Svartholm (1998: 40), ao referir-se às bases de uma educação bilingue para crianças surdas, evidencia as condições essenciais para uma educação bem sucedida:

Em primeiro lugar, sabemos que a aquisição de uma primeira língua deve ser assegurada à criança. Se uma criança, ouvinte ou surda, não puder ter uma participação activa em situações comunicativas nas quais esteja sendo usada uma língua inteli-gível, não se pode contar com um desenvolvimento normal na primeira língua.

Nós também sabemos que esta primeira língua deve ser de fácil acesso para a criança. Para o surdo isto significa a Língua de Sinais 3. A fala ape-nas, ou misturas inventadas de fala e sinais (como o sueco sinalizado 4, por exemplo) são, no mínimo, claramente insatisfatórias como base para o desenvolvimento normal da primeira língua; nem tampouco são adequadas para o desenvolvimento de uma segunda língua.

4. As famílias

Factores ainda a considerar no desenvolvimento global das crianças surdas, prendem-se com os diversos tipos de família, a sua história, o seu passado, a sua relação com a cultura e o conhecimento, bem como a importância que atribuem ao futuro dos seus filhos e o investimento que estão dispostos a fazer no sentido de lhes propor-cionarem instrumentos para uma vida plena.

Os pais de crianças surdas devem estar conscientes que tudo está ao alcance dos seus filhos: devem manter as expectativas elevadas em relação ao seu futuro, e, para que isso seja possível, devem estar informados. Mahshie (1997) refere, a este propósito:

Parents’ ability to clearly observe their child’s progress and trust their intuitions is facilitated when they become conscious that normal developmental and language milestones are well within the reach of Deaf children, and that they don’t have to “settle for less” when it comes to their own Deaf child. Through preschools and parent group activities, many parents in Sweden and Denmark are in a position to regularly observe other Deaf children whose linguistic and cognitive develop-ment is proceeding “on schedule”.

No nosso país, não são frequentes iniciativas neste âmbito, mas exis-te uma iniciativa privada, sob a designação de Inforforum 5, que procura juntar pais de crianças surdas proporcionando-lhes formação em língua gestual portuguesa, bem como às suas crianças surdas. Este projecto oferece ainda às crianças surdas iniciação à informática ministrada por formadores surdos nativos de língua gestual, sendo as aulas dadas em língua gestual o que facilita a aprendizagem e simultaneamente ajuda a aumentar os conhecimentos de língua gestual portuguesa destas crianças. Neste espaço são ainda realizados debates e sessões de informação sobre diversos temas relacionados com a educação de crianças surdas e com a comunidade surda.

5. Leitura e escrita: passos para uma literacia

Martins (1996: 20), ao referir aspectos da compreensão dos objecti-vos da linguagem escrita, diz que:

Aprender a ler significa também aprender o sentido das práti-cas sociais e culturais em torno da linguagem escrita e esse sentido só pode adquirir-se através da participação nessas mesmas práticas.
É assim que a compreensão dos objectivos da leitura depende das oportunidades de interacção com a linguagem escrita e a propósito da linguagem escrita que as crianças tiveram antes da sua entrada para a escola primária, quer em meio familiar, em jardins-de-infância ou noutros contextos educativos, e das formas mais ou menos agradáveis com que esse contacto com práticas de utilização da linguagem escrita ocorreu.

O desenvolvimento da literacia nas crianças e jovens implica a capa-cidade de compreender a polissemia das palavras de acordo com os diferentes contextos em que ocorrem e que lhes alteram os sentidos. Estes conhecimentos básicos são adquiridos com a aprendizagem da leitura e da escrita e desenvolvidos através do contacto com diferen-tes fontes e meios de informação. Estes meios são hoje complemen-tados por novos desafios resultantes do advento da sociedade de informação suportada pelo desenvolvimento tecnológico dos meios de comunicação universais, em tempo real, que, através dos computadores e de redes de informação, fornecem novos contextos de divulgação de conhecimentos, propiciadores de novas leituras. O desenvolvimento tecnológico torna o conceito de literacia mais abrangente e acentua a discriminação sobre aqueles que a ela possam não ter acesso.

Botelho (2005:70) destaca a importância das tecnologias de infor-mação e comunicação e das mudanças que trouxeram ao quotidiano das pessoas, associando-as a uma diversificação de textos e à neces-sidade de novas competências específicas para a sua descodificação, conferindo ainda uma nova dimensão ao conceito de literacia que designa como multiliteracia.

Esta condição de multiliteracia, emergente das novas possibilidades tecnológicas, tem um efeito potenciador tanto dos meios, como dos modos de leitura. O conceito de multiliteracias encontra-se ligado à diversificação de textos “objectos semióticos multimodais” que requerem capacidades de leitura cruzadas e que implicam que o “lei-tor” domine um conjunto de conhecimentos sobre convenções e géneros, tanto decorrentes da literacia tradicional, como de um uni-verso onde se cruzam vários sistemas semióticos. (Botelho, 2005:74).

O caso das crianças surdas pode tornar-se ainda mais grave pois a sua motivação para a literacia está muito dependente das condições de aquisição da primeira língua e do facto de terem tido ou não um ambiente propício ao desenvolvimento da leitura e da escrita. Svar-tholm (1998: 42) diz a propósito da leitura:

Aprender a ler é, sem dúvida, uma tarefa difícil para qualquer criança que aprende a ler em uma língua diferente da sua, mas para os surdos, essa tarefa parece ser ainda mais difícil, já que aprender a ler significa aprender a língua.

Esta autora justifica o adiamento do ensino de uma segunda língua a uma criança surda pela necessidade de garantir que ela faça a aquisi-ção da primeira língua. É com esta primeira língua, a língua gestual, que se irão transmitir à criança surda informações sobre o mundo, coisas e acontecimentos, comunicando e interagindo com ela. É cla-ro que Svartholm (1998: 42) não põe de lado o contacto com a segunda língua, a língua escrita:

Obviamente, não há razão para excluir a criança surda, em fase pré-escolar, da literatura infantil ou de outras formas comuns de usar a língua escrita juntamente com a criança, como, por exemplo, escrever listas de compras ou cartas e postais para amigos e parentes. Mas ler em voz alta para a criança – o que implica na conversão de textos em Língua de Sinais 6 – é algo diferente de ensinar.
A leitura de livros e revistas deve ser feita com crianças em fase pré-escolar porque diverte, estimula e satisfaz a curiosi-dade da criança, e não por causa de objectivos educacionais. Através da leitura, a criança será bem preparada para o ensi-no posterior em uma segunda língua: uma postura com relação à língua escrita como algo divertido e interessante deve ser a melhor base para novos aprendizados.
…………

Estes são alguns dos pressupostos a considerar no sentido de cons-truir um caminho positivo para as crianças surdas portuguesas, apro-veitando aquilo que de melhor encontramos na experiência acumu-lada de outros países.

Existem muitas abordagens possíveis: para escolher a que conside-ram a mais adequada, os pais de crianças surdas deverão estar informados das diferentes escolhas, e fazê-lo usando de algum espí-rito crítico e da sua sensibilidade de pais que, naturalmente, desejam o melhor para os seus filhos.
Sugerimos de seguida algumas estratégias 7, entre muitas possíveis, que podem contribuir para a promoção das capacidades de literacia das crianças surdas.

De um modo gradual:

  • Comunicar com o bebé emitindo mensagens usando todos os sentidos possíveis: toque, expressão facial, fala, mímica, gesto.
  • Respeitar os tempos de reacção do bebé.
  • Atrair a atenção do bebé movendo um brinquedo até ao seu próprio rosto para iniciar a comunicação com o bebé.
  • Tocar num objecto várias vezes no campo visual do bebé antes de dizer alguma coisa sobre o objecto.
  • Quando o bebé dá sinais de compreender a linguagem, dizer e gestualizar palavras ou frases curtas, apontando ou tocando nos objectos adequados.
  • Não enviar demasiadas mensagens em simultâneo.
  • Ter sempre à mão livros adequados à idade em todas as divisões, incluindo a casa de banho.
  • Começar com livros à prova de água e em cartão com imagens claras e próprias para bebés. Ler pelo menos um livro destes por noite. Aumentar o número de livros à medida que a criança cresce.
  • Usar acessórios, como por exemplo peluches, para encarnar as personagens à medida que vêem/lêem os livros em conjunto.
  • Traduzir a partir do português escrito para a língua gestual portuguesa (LGP), para explicar o conteúdo da história. A LGP pode transmitir as emoções e os estados de espírito de modo mais claro.
  • À medida que a criança se torna consciente da língua escrita, apontar com o dedo as palavras-chave enquanto se gestualiza. Gestualizar na ordem do português escrito e usar o alfabeto manual 8 sempre que seja adequado.
  • Usar o alfabeto manual desde cedo. As crianças desenvolvem a capacidade de compreender o alfabeto manual na idade de 2 a 2,5 anos. Com 3 ou 4 anos conseguem ler e compreender palavras soletradas através do alfabeto manual.
  • Ter sempre à mão materiais de escrita.
  • Levar a criança a livrarias e bibliotecas para as incentivar a comprar ou pedir livros emprestados. Assinar revistas adequadas à sua idade.
  • Criar puzzles com letras recortadas de revistas para formar palavras.
  • Encorajar a criança a escrever: recados, notas de agradeci-mento, postais ou cartas.
  • Escrever listas de compras com a criança e agrupar os itens por categorias: vegetais, mercearias, produtos lácteos.
  • Interpretar os programas de televisão até que a criança desen-volva capacidades de leitura autónoma.
  • Incentivar a criança a fazer palavras cruzadas e outros jogos de palavras.
  • Levar a criança a praticar escrita em teclados, por exemplo: em telefones de texto, ou em computador (serviços de mensagens escritas), para comunicar com os seus familiares ou ami-gos e assim desenvolver uma comunicação em dois sentidos, em tempo real, o que contribui para desenvolver as suas capacidades de escrita.
  • Oferecer livros adequados a cada idade, tendo o cuidado de escolher temas que se sabe serem do agrado da criança.
  • Escrever e ler junto da criança pode ser um bom incentivo para que ela leia e escreva.

Reflexões finais / Conclusões

Com este artigo pretendeu-se facultar, aos leitores, em geral, e aos pais, familiares e educadores de crianças surdas, em particular, informação básica sobre como proporcionar a estas crianças um ambiente linguístico favorável ao desenvolvimento da sua literacia. Estando-lhes vedado o acesso natural a uma língua oral, é essencial que as crianças surdas tenham acesso a uma língua para elas natural e de fácil acesso através da visão. Comprovadamente, esta língua é a língua gestual. A língua gestual é veiculada através da visão e utiliza o gesto, o espaço, o olhar e a expressão facial e corporal de modo apelativo para a criança surda: cresce com ela atingindo graus de sofisticação e eficácia que lhe permitem o acesso a qualquer outra língua gestual ou oral. As capacidades de transferência linguística, inatas e ensinadas, permitem-lhe um acesso total à língua do seu país, sobretudo através da leitura e da escrita, componentes essen-ciais para o seu desenvolvimento académico e profissional, e com-plementarmente através da fala, como factor de socialização.

Em Portugal, a Língua Gestual Portuguesa foi reconhecida oficial-mente pela Quarta Revisão Constitucional, Lei 1/97, de 20 de Setembro, que no seu artigo 74, nº 2, alínea h), diz:

Proteger e valorizar a língua gestual portuguesa enquanto expressão cultural e instrumento de acesso à educação e da igualdade de oportunidades

Notas

1 Descritores audiométricos em Martin, M., B. Grover (1990)
2 Conforme relatado em Mahshie (1997)
3 Língua de Sinais é a expressão usada no Brasil para identificar a língua gestual.
4 Sueco sinalizado, corresponde ao conceito que em Portugal se designa por “por-tuguês gestual” e que corresponde a uma versão gestualizada do português oral, não respeitando portanto os aspectos gramaticais da Língua Gestual Portuguesa, nomeadamente: sintaxe, semântica, sistemas de negação e interrogativas.
5 Este projecto decorre na sequência de um projecto anterior sob a designação de “Fórum Família”, sob a coordenação da Srª. Drª. Isabel Galhardo.
6 Designação brasileira para a Língua Gestual.
7 Estratégias adaptadas de duas fontes: http://home.inreach.com/torsi/deafliteracy.html, consultado em 21.01.05, e Stewart & Clarke ((2003)
8 O alfabeto manual varia de país para país, podendo existir algumas semelhan-ças. Também pode ser designado por: dactilologia.

Bibliografia

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